Getúlio Vargas
e as três índias
1. O dia do índio se aproxima. Nesse dia, acreditem se quiserem, sou sempre tentado a escrever sobre Getúlio Vargas e não sobre os silvícolas. E digo por quê: o nosso GG nasceu no dia 19 de abril de 1883. Portanto, no mesmo dia e mês escolhidos pelo Brasil para homenagear seus indígenas; que estão por aí sobrevivendo, só Deus sabe como.
2. Muito bem. Dois Getúlios ficaram pra sempre na minha lembrança. O primeiro. Eu ainda engatinhava e já ouvia falar nele. Meus pais eram getulistas até a medula. Coitado daquele que, na presença deles, ousasse falar mal do "pai dos pobres". Armava-se um quiproquó dos diabos.
3. Na minha cidade, lá no alto sertão do Ceará, o aniversário do doutor Getúlio era comemorado com palestras, retretas, desfiles e um demorado foguetório.
4. Dos desfiles participavam os colégios, o Tiro de Guerra e os soldados da Polícia Militar pertencentes ao destacamento local. Tudo ao som do Hino Nacional cantado pelos estudantes acompamhados pela banda de música da cidade obediente à esforçada batuta do mestre Pedro Lima.
5. No Grupo Escolar, minhas devotadas professoras botavam Getúlio acima das nuvens. E se o leitor me perguntar se elas eram obrigadas a fazê-lo, respondo que, até onde me lembro, não: Getúlio Vargas era um mito; um ídolo!
6. Nas salas de aula, ao lado do Crucificado, a diligente diretora botava, solenemente, um retrato do ditador. Aquele retrato, muito conhecido, em que Getúlio, de jaquetão, esboça seu inconfundível sorriso, denunciador da alegria do político bem-amado.
7. O prefeito de minha cidade era um fiel escudeiro do GeGê. Mantinha com o astuto caudilho dos pampas uma intimidade somente praticada por velhos e amigos íntimos. Por causa dessa amizade, até um inexpressivo chafariz da municipalidade podia receber o nome do Presidente Vargas ou de dona Darcy Vargas, a primeira-dama da República.
8. O GeGê era um enviado de Deus, assim me ensinaram a vê-lo, no meu tempo de calças curtas. Hoje, diriam que "ele era o cara". Eu não tinha a menor ideia do que de errado podia fazer um ditador. E nem me interessava em saber. Eu era um menino feliz, acreditando no meu país.
9. O segundo. Eu estava servindo ao Exército Brasileiro, em Fortaleza, quando, na manhã do dia 24 de agosto de 1954, Getúlio se matou.
Integrando uma tropa de Artilharia, entrei imediatamente em rigoroso regime de prontidão, mal a bala do seu revolver, calibre 32, cabo de madrepérola, traspassara o coração do velho Gegê.
E só voltei pra casa quando o corneteiro militar anunciou que o velho caudilho havia sido enterrado em São Borja, sua terra natal.
10. Nos dias que se seguiram ao suicídio, fiz ver aos meus pais, ainda azoados diante do que acontecera com o ídolo, que a "era Vargas" tinha acabado. São estes os dois Getúlios que guardo na memória.
11. Falemos, agora, das três índias. As três índias, e seus amores... Recordo-as, para que não as percamos de vista.
12. Disse em outras crônicas que "Iracema" foi o primeiro romance que li de cabo a rabo, mal deixara o seminário. Disse, também, que me apaixonara - Oh! Como me apaixono fácil! - por Iracema, a linda tabajara, protagonista do doce romance cearense, uma fascinante mentira. Paixão, aliás, que cultuo até a presente data. E daí?
13. Pouco me importei quando soube que a índia Iracema era, apenas, a principal figura de uma lenda bem-contada; linda lenda alencarina bolada por José de Alencar. Sua estória de amor com o guerreiro branco Martim Soares Moreno é de uma ternura sem limites, em que pese Alencar ter dado ao seu romance um dolorido final.
14. Nasce Moacir. E Iracema, desconfiada de que o guerreiro branco, pai de Moacir, não a amava mais, morre logo em seguida ao nascimento do filho.
Soares Moreno a enterra ao pé de um coqueiro. E parte de volta pra sua terra levando nos braços o pequeno brasileiro, filho dele com uma india nordestina.
15. Para alguns escritores perspicazes, a viagem de Moacir prenunciava a fama de andejo que hoje persegue os filhos do Ceará.
Pena que tenham erguido, numa praia de Fortaleza, uma estátua de Iracema tão feia que, não duvido, levaria Alencar a rasgar seu romance. Mas posso garantir que Iracema, "a virgem dos lábios de mel", permanece bela na imaginação dos cearenses. 16. Outra índia brasileira que ganhou as manchetes internacionais foi a Diacui, depois de seu casamento com um homem branco, o sertanista Ayres Câmara da Cunha, em 29 de novembro de 1952. O enlace comoveu o Brasil e o mundo.
17. Os jornais da época dizem que o casamento, realizado na igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, com ampla cobertura da poderosa revista "O Cruzeiro", reuniu mais de dez mil pessoas; pessoas simples e pessoas importantes.
Diacui chegou ao altar conduzida por seu padrinho, o jornalista Assis Chateaubriand, naquele momento o homem mais poderoso da comunicação no Brasil.
18. A índia kalapala engravidou imediatamente após o seu casamento. Às vésperas do nascimento de sua filha, aconteceu-lhe o pior: ela foi abandonada pelo marido. Quando ela pariu, registram os cronistas da época, Ayres da Cunha encontrava-se em Aragarças; a seiscentos quilômetros de sua índia.
19. Diacui, que na língua dos Kalapalos significa "flor do campo", morreu completamente esquecida, no dia 10 de agosto de 1953. Ayres da Cunha, se for verdade o que se disse dele, foi, depois de Martim Soares Moreno, o segundo branco a fazer uma bruta sacanagem com uma inocente índia. Moreno, na ficção; Ayres, na vida real.
20. Minha neta se chama Catarina, tem cinco anos, mora no Rio de Janeiro, e passa férias comigo, em Salvador. Ela gosta de ouvir histórias.
21. No nosso último encontro, contei-lhe a história de uma índia. Disse-lhe que na Bahia, há muitos séculos, uma índia da tribo dos Tupinambás, casara-se com um naufrago português, e com ele teve seis filhas.
E ela: " Você sabe o nome delas".
Sei: Ana, Genebra, Apolônia, Gracia, Felipa e Madalena.
22. O português, disse-lhe mais, chamava-se Diogo Álvares Correia; nascera em Viana do Castelo; e tinha um apelido muito interessante: Caramuru.
Aí passei a lhe contar o porquê desse apelido; como Caramuru chegara à Bahia; e como conquistara a confiança dos Tabajaras.
Nem preciso dizer que ela adorou a história do bacamarte de Caramuru, que ao disparar, assustou e conquistou os índios.
23. - "Agora, o nome da índia, vovô."
Parei e lhe disse: você não vai acreditar: ela se chamava Catarina. Os olhinhos dela cintilaram e explodiram num sorriso contagiante.
Ela também ficou sabendo que Catarina Paraguaçu é, talvez, a índia mais importante da História do Brasil. E mais: que ela morreu, bem velhinha, e está enterrada, desde 1589, no chão da igrejinha da Graça, em Salvador, templo construído por ela e Caramuru, entre 1530 e 1535.
Prometia levá-la ao túmulo de Catarina enquanto ela mergulhava num profundo e sossegado sono.
e as três índias
1. O dia do índio se aproxima. Nesse dia, acreditem se quiserem, sou sempre tentado a escrever sobre Getúlio Vargas e não sobre os silvícolas. E digo por quê: o nosso GG nasceu no dia 19 de abril de 1883. Portanto, no mesmo dia e mês escolhidos pelo Brasil para homenagear seus indígenas; que estão por aí sobrevivendo, só Deus sabe como.
2. Muito bem. Dois Getúlios ficaram pra sempre na minha lembrança. O primeiro. Eu ainda engatinhava e já ouvia falar nele. Meus pais eram getulistas até a medula. Coitado daquele que, na presença deles, ousasse falar mal do "pai dos pobres". Armava-se um quiproquó dos diabos.
3. Na minha cidade, lá no alto sertão do Ceará, o aniversário do doutor Getúlio era comemorado com palestras, retretas, desfiles e um demorado foguetório.
4. Dos desfiles participavam os colégios, o Tiro de Guerra e os soldados da Polícia Militar pertencentes ao destacamento local. Tudo ao som do Hino Nacional cantado pelos estudantes acompamhados pela banda de música da cidade obediente à esforçada batuta do mestre Pedro Lima.
5. No Grupo Escolar, minhas devotadas professoras botavam Getúlio acima das nuvens. E se o leitor me perguntar se elas eram obrigadas a fazê-lo, respondo que, até onde me lembro, não: Getúlio Vargas era um mito; um ídolo!
6. Nas salas de aula, ao lado do Crucificado, a diligente diretora botava, solenemente, um retrato do ditador. Aquele retrato, muito conhecido, em que Getúlio, de jaquetão, esboça seu inconfundível sorriso, denunciador da alegria do político bem-amado.
7. O prefeito de minha cidade era um fiel escudeiro do GeGê. Mantinha com o astuto caudilho dos pampas uma intimidade somente praticada por velhos e amigos íntimos. Por causa dessa amizade, até um inexpressivo chafariz da municipalidade podia receber o nome do Presidente Vargas ou de dona Darcy Vargas, a primeira-dama da República.
8. O GeGê era um enviado de Deus, assim me ensinaram a vê-lo, no meu tempo de calças curtas. Hoje, diriam que "ele era o cara". Eu não tinha a menor ideia do que de errado podia fazer um ditador. E nem me interessava em saber. Eu era um menino feliz, acreditando no meu país.
9. O segundo. Eu estava servindo ao Exército Brasileiro, em Fortaleza, quando, na manhã do dia 24 de agosto de 1954, Getúlio se matou.
Integrando uma tropa de Artilharia, entrei imediatamente em rigoroso regime de prontidão, mal a bala do seu revolver, calibre 32, cabo de madrepérola, traspassara o coração do velho Gegê.
E só voltei pra casa quando o corneteiro militar anunciou que o velho caudilho havia sido enterrado em São Borja, sua terra natal.
10. Nos dias que se seguiram ao suicídio, fiz ver aos meus pais, ainda azoados diante do que acontecera com o ídolo, que a "era Vargas" tinha acabado. São estes os dois Getúlios que guardo na memória.
11. Falemos, agora, das três índias. As três índias, e seus amores... Recordo-as, para que não as percamos de vista.
12. Disse em outras crônicas que "Iracema" foi o primeiro romance que li de cabo a rabo, mal deixara o seminário. Disse, também, que me apaixonara - Oh! Como me apaixono fácil! - por Iracema, a linda tabajara, protagonista do doce romance cearense, uma fascinante mentira. Paixão, aliás, que cultuo até a presente data. E daí?
13. Pouco me importei quando soube que a índia Iracema era, apenas, a principal figura de uma lenda bem-contada; linda lenda alencarina bolada por José de Alencar. Sua estória de amor com o guerreiro branco Martim Soares Moreno é de uma ternura sem limites, em que pese Alencar ter dado ao seu romance um dolorido final.
14. Nasce Moacir. E Iracema, desconfiada de que o guerreiro branco, pai de Moacir, não a amava mais, morre logo em seguida ao nascimento do filho.
Soares Moreno a enterra ao pé de um coqueiro. E parte de volta pra sua terra levando nos braços o pequeno brasileiro, filho dele com uma india nordestina.
15. Para alguns escritores perspicazes, a viagem de Moacir prenunciava a fama de andejo que hoje persegue os filhos do Ceará.
Pena que tenham erguido, numa praia de Fortaleza, uma estátua de Iracema tão feia que, não duvido, levaria Alencar a rasgar seu romance. Mas posso garantir que Iracema, "a virgem dos lábios de mel", permanece bela na imaginação dos cearenses. 16. Outra índia brasileira que ganhou as manchetes internacionais foi a Diacui, depois de seu casamento com um homem branco, o sertanista Ayres Câmara da Cunha, em 29 de novembro de 1952. O enlace comoveu o Brasil e o mundo.
17. Os jornais da época dizem que o casamento, realizado na igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, com ampla cobertura da poderosa revista "O Cruzeiro", reuniu mais de dez mil pessoas; pessoas simples e pessoas importantes.
Diacui chegou ao altar conduzida por seu padrinho, o jornalista Assis Chateaubriand, naquele momento o homem mais poderoso da comunicação no Brasil.
18. A índia kalapala engravidou imediatamente após o seu casamento. Às vésperas do nascimento de sua filha, aconteceu-lhe o pior: ela foi abandonada pelo marido. Quando ela pariu, registram os cronistas da época, Ayres da Cunha encontrava-se em Aragarças; a seiscentos quilômetros de sua índia.
19. Diacui, que na língua dos Kalapalos significa "flor do campo", morreu completamente esquecida, no dia 10 de agosto de 1953. Ayres da Cunha, se for verdade o que se disse dele, foi, depois de Martim Soares Moreno, o segundo branco a fazer uma bruta sacanagem com uma inocente índia. Moreno, na ficção; Ayres, na vida real.
20. Minha neta se chama Catarina, tem cinco anos, mora no Rio de Janeiro, e passa férias comigo, em Salvador. Ela gosta de ouvir histórias.
21. No nosso último encontro, contei-lhe a história de uma índia. Disse-lhe que na Bahia, há muitos séculos, uma índia da tribo dos Tupinambás, casara-se com um naufrago português, e com ele teve seis filhas.
E ela: " Você sabe o nome delas".
Sei: Ana, Genebra, Apolônia, Gracia, Felipa e Madalena.
22. O português, disse-lhe mais, chamava-se Diogo Álvares Correia; nascera em Viana do Castelo; e tinha um apelido muito interessante: Caramuru.
Aí passei a lhe contar o porquê desse apelido; como Caramuru chegara à Bahia; e como conquistara a confiança dos Tabajaras.
Nem preciso dizer que ela adorou a história do bacamarte de Caramuru, que ao disparar, assustou e conquistou os índios.
23. - "Agora, o nome da índia, vovô."
Parei e lhe disse: você não vai acreditar: ela se chamava Catarina. Os olhinhos dela cintilaram e explodiram num sorriso contagiante.
Ela também ficou sabendo que Catarina Paraguaçu é, talvez, a índia mais importante da História do Brasil. E mais: que ela morreu, bem velhinha, e está enterrada, desde 1589, no chão da igrejinha da Graça, em Salvador, templo construído por ela e Caramuru, entre 1530 e 1535.
Prometia levá-la ao túmulo de Catarina enquanto ela mergulhava num profundo e sossegado sono.