Chuva
Hoje à noite, de madrugada, choveu. Mas que chuva leve! sem relâmpagos, trovões, ventos...chuvinha doce, embora intensa, presente aquoso de Deus aos homens. Deus, às vezes, costuma dar presentes. Sei disso. Sei também que é uma delícia dormir com chuva respingando, num tamborilar delicioso, no telhado. Uma delícia. Só mesmo os sem-coração que não conseguem aproveitar esse despreendimento pluviométrico dos céus. Ah, se é.
O calor de há dias, felizmente, foi-se. A umidade do ar provavelmente aumentou. As pessoas, principalmente as gordas, puderam sair à rua sem sombrinha e sem ter de levar muitas vezes o lenço à face, para enxugar o brotolho de suor que escorre em dias assim. O calor era infernal. A chuva da madrugada, portanto, foi, para nós, duplo motivo de contentamento: o primeiro de podermos dormir com a singular sinfonia oriunda do céu em forma de gotículas potencialmente sonoras quando batem nas telhas; o segundo, uma decorrência do primeiro, de o calor ter ido embora, se amainado, propiciando à gente uma alegria comum. Que venha o outono, época das folhas despencarem, preparando a paisagem para o rigoroso, embora aqui não seja tão rigoroso assim, inverno de junho, julho. Chuvinha de despedida, de transição entre estações.
Voltando à chuva de madrugada. Minha chuvinha silenciosa e livre das tempestades provocadas muitas vezes pela ação monstruosa dos homens, desrespeitador dos limites naturais. Chuvinha sem mágoa, quase triste, chuva esquecida, amargurada, cumprindo seu papel que é molhar a terra, desabafar e estragar as casinhas de formigas...chuvinha piedosa, choro resignado e misericordioso de Deus.
As reflexões que ia fazendo, enquanto me preparava pra deitar, cessaram. Abri a janela, um vento úmido entrou no meu quarto. Tantas vezes isso ocorre, tantas vezes é gostoso...deitei, fui lentamente me acobertando por causa do friozinho, e, já de olhos fechados, na madorna que antecede à perca dos sentidos conscientes que é o dormir profundo, dei um sorriso leve, mole, gostoso, que, desconfio, é de natureza mesma dessa chuva que deixou pequena saudade gravada dentro, em forma de gota. Qualquer dia eu aprendo a chover e aprendo também a esfriar os ânimos hostis das pessoas. Por enquanto, estou seco.