Reencontro com Kafka
Fazia algum tempo que não tinha com Franz Kafka. Tratava-se de um reencontro. Ali, de frente ao palco, alguma luz iluminava as estantes cheias de papéis que representavam os processos dos inúmeros acusados. A belíssima obra de um gênio da literatura universal seria representada a seguir. Sozinho, numa poltrona não muito confortável, eu aguardava sem olhar ao redor. Limitava minha visão ao que estava ao alcance dos meus olhos, nada mais buscava.
Era uma noite muito agradável. Eu me vestira bem. Desta vez, não utilizei transporte público, este que diversas vezes cito em textos. Dirigia meu pequeno carro, comprado há pouco tempo de grande amigo. Sintonizara a rádio que este mesmo amigo me informara a freqüência. Fui vagarosamente ao som de música erudita, com vidros fechados e ar-condicionado ligado.
Errei, ali era a saída de veículos. Gentilmente, fui orientado pelo funcionário do SESC. Retribuí a simpatia e nossa comunicação foi muito boa. Dei ré e por sorte não bati na mureta que eu nem havia reparado. Fiz a volta e logo encontrei a entrada. Um Ford Ka entrou primeiro que eu. Dentro dele, três simples mulheres que observei me olhavam. Uma delas até olhei como quem avaliava. Estacionei e a lembrança me indicou onde ficava o elevador. O ascensorista que já conheço é extremamente cortez e comunicativo. Pediu-me que esperasse as três mulheres. Orientou-nos a tomar um café no térreo antes do início da peça, pois faltavam muitos minutos ainda. Aceitei sua sugestão. Mas lá no café súbito veio a preocupação, pois me lembrei que ainda não comprara ingresso. Eu estava sozinho, embora tivesse tentado convidar uma amiga.
A fila foi rápida. Ao longe, vendo a tela do computador, escolhi a minha poltrona. Enganei-me ao pensar que os quadradinhos azuis representavam ingressos ainda disponíveis. A cor branca era o sinal de lugar vazio. Sempre escolho um que fique na ponta que é pra facilitar a saída. E assim o fiz novamente.
Não há como negar, mas peças de teatro quase sempre estimulam sentimentos calados em mim. E teatro é algo mágico. Por um momento, imaginei que pelo mundo afora inúmeras peças eram representadas. E aquela seria apenas um exemplo de expressão daquilo que o ser humano é capaz de criar. Havia em mim a clara certeza do quanto aquele momento era fugaz, do quanto ele já pertencia a um passado. Consegui sentir um passar de anos de tal forma que todos ali já não estávamos mais presentes. Era apenas um devaneio. O tempo, sua rapidez, é inexplicável. Pode até assustar.
Assisti à representação com algum desconforto físico. Demorou um pouco para que esquecesse o mundo lá fora. Ficava maravilhado com as mudanças de posicionamento das peças que compunham o cenário. Um casal, não demorou muito, foi embora. Na hora, julguei que não haviam lido a obra de que se tratava a peça, e por isso não entendiam. Mas era apenas suposição. De qualquer forma, desconcentrei-me por um momento e calculei que uma saída assim também pudesse fazer o mesmo com os atores, o que era um equívoco meu, certamente.
Ao término da peça, saí. Desde o café, já havia pago o estacionamento, o que fora mais uma gentil orientação do ascensorista hábil com público. Assim, não perdi tempo com fila, senão a de carros. Dois dos quais deixei passar à minha frente, mas só um deles agradeceu, o que não me aborreceu, evidentemente. Entreguei o comprovante de pagamento e deixei o local. Estava muito perto de casa. Tomei aquela enorme avenida e subtraí a distância dali à minha casa. A noite estava gostosa e talvez eu desejasse estica-la. Quem sabe um bar, um local onde houvesse mulheres. Mas era apenas um pequeno grito da carência. Sabia que o melhor era ir para casa. De certo, se tivesse uma companhia comigo teria ido pra algum lugar. Abri a garagem a ainda tocava música erudita dentro carro. O vigia da rua, um jovem rapaz que não tenho muita simpatia, e me parece recíproco da parte dele, permaneceu sentado à cadeira em frente a casa ao lado. Não nego que teria me agradado se ele abrisse a porta da garagem, mas de certo este era um desejo pequeno burguês meu. Entrei. Fechei a porta. Mandei mensagem para uma mulher. E tive com ela na internet. O depois disto ainda não ocorreu.