Despedida.
A sala encoberta pela névoa de fumaça saindo da boca do Malaquias tornava o ambiente respirável apenas para quem fuma. Seu charuto entre os dedos enrugados era a marca de um dos vícios que o acompanhava desde sua adolescência. As paredes rústicas com a pintura deformada pelo tempo era o cenário observado pelas vistas cansadas do velho Malaquias sentado em uma poltrona rasgada que enfeitava a pequena sala. O silêncio o envolvia, tornando possível ouvir o barulho dos seus pensamentos levando-o ao seu passado. Levantou colocou seu terno azul escuro desbotado pegou sua gravata preta que o enfeitava em ocasião especial e penteou seus poucos cabelos brancos que encobriam a cabeça. O charuto foi de encontro ao um cinzeiro de metal enferrujado e com muita dificuldade levou a mão no bolso e tirou o velho relógio que o acompanhava ha décadas e viu que estava atrasado, com dificuldade foi andando até a porta, apesar de ser dia, estava escuro e caia uma neblina fria, abriu seu guarda-chuva que também servia de muleta para escorar o corpo velho quando precisava. A rua de paralelepípedo atrapalhava a movimentação dos pés. Chega certa idade os pés começam a pesar muito, e se mover torna uma luta diária. A garoa fria molhava seu sapato preto que reluzia a cera que foi aplicada cuidadosamente. Malaquias olhou para uma gota de chuva que escorria pela bordas do chapéu preto que encobria os poucos cabelos grisalhos que restavam na cabeça. Os pés pesados que prosseguiam passo a passo driblando a fraqueza que a vida expressava em seu rosto. A envergadura das costas denunciava cada ano de dificuldade sustentada pela tristeza que o guiava. A pouca fumaça do ar quente liberada pela boca em contato com a neblina fria, mostrava seu problema de respiração que lhe roubava o fôlego pela narina. A rua estava deserta não sabia se era pela neblina ou pelo dia que apenas ele conhecia a importância! Seguia lentamente e a sua memória cansada buscava flashs de fatos vivido no tempo em que a felicidade habitava aquela vida. Foi casado durante cinqüenta anos e se tivesse o poder da vida daria a ela mais cinqüenta anos, nas surpresas da vida viu seu corpo se decompor no passar dos dias. Era insuportável olhar aquele corpo se transformar, aquele corpo que eu beijava, aquele corpo que me aquecia nas noites frias, que arrepiava ao meu toque, olhava para ele magra se corroendo, batia uma tristeza apavorante. Mas precisava mostrar para ela que era forte, que seu herói estava ali ao seu lado, e ia protegê-la, mais o que eu queria mesmo era desabar, era excomungar o Deus que fazia isso com ela, sentava ao seu lado, segurava a tua mão e o silêncio falava por nós, queria dizer tantas coisas, mais o que dizer nessa hora? Apenas acariciava a tua mão e ficava assim até ela adormecer. Nos dias finais que o câncer havia roubado aquele corpo de mim; ela balbuciou algumas palavras: - Sinto que estou partindo, não adianta mais lutar, ele é mais forte que nós, porém a morte leva o meu corpo, mais o meu amor vivera em ti, e onde eu estiver você vai estar em mim. Momentos depois a vida a levou. O calor da lágrima escorrendo pela sua face o trouxe para o momento presente. Avistou de longe um grupo de adolescentes que bebiam alegremente, a garrafa dançava de mão em mão, a visão foi ficando mais próxima e era possível ouvir os gritos deles, um falando mais alto que o outro, eles não o viram e teve que desviar para não ser atropelado, uma adolescente com cabelos pintados virou-se de costa e seus olhos foi de encontro ao do Malaquias, no teor do olhar e era visível o modo que o condenava, como se os anos cravados em seu rosto fossem um defeito, os jovens pensam que vitalidade da juventude é para sempre, ser velho é carregar nas costas a marca do incomodo, confundido ao lixo descartado aos porcos, se os jovens parassem e olhassem para frente cuidariam dos idosos, porque eles estavam cuidando de si mesmo no futuro, mais não, eles os vêem como um empecilho velho e doente esperando sentado em uma poltrona a sua morte, seus olhos foi de encontro à floricultura. Foi passada uma tinta na parede de frente, o vermelho foi misturado com muita água pelas manchas brancas que destacavam mais do que a cor que deveria ser. As flores eram armazenadas em prateleiras feitas de tijolos, o piso molhado pela água escorrida das plantas dava uma impressão de um ambiente mal cuidado, mais isso não importava mais para o Malaquias, nada era mais desonrado do que ver o caixão da sua amada descendo buraco a baixo. A mulher largou as rosas que cortava no balcão, limpou sua mão no avental sujo e veio de encontro ao Malaquias: - As mesmas de sempre?
Ele balançou a cabeça que sim. A mulher entrou e saiu com um vaso de flores brancas de cemitério, e entregou-o, olhou no calendário e fez uma marca, todo mês nesse dia aquele velho lhe comprava flores, sempre teve curiosidade de perguntar o porquê, mais antes dela concluir seus pensamentos, ele já estava vagarosamente atravessando a rua, um carro parou, Malaquias o fitou com os olhos, ainda havia pessoas boas neste mundo, pensou, e atravessou devagar. O muro do cemitério parecia interminável para um velho da sua idade, em passos lentos, ele chegou, ficou ali parado em frente com o vaso na mão, observava aquele corpo frio deitado dentro daquele túmulo, a garoa cessou em respeito aquele momento, pensou-o, foi devagarzinho, tirou o vaso de flores secas do mês passado e colocou o novo, secou o túmulo com a mão deixando o ainda úmido e sentou ali. Começou a falar coisa que só ela conhecia, deu risada, chorou e agradeceu cada momento que ela cuidou dele, sorriu a dizer que hoje era o aniversário de casamento deles e entristeceu ao lembra que era a primeira vez em cinqüenta anos que ele passava sem o seu olhar, sem o seu beijo, sem a sua presença, limpou uma gota da água na sua foto fria e solitária que enfeitava o túmulo, olhou nos olhos dela, parecia que a olhava e o agradecia por manter vivo esse amor, ele beijou a foto, arrumou o vaso que estava torto, fez uma prece de agradecimento e voltou para sua solidão esperando o dia em que a vida os unisse de novo.
Osvaldo Valério
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