A Menina e a Mulher

A Menina e a Mulher

Maju Guerra

A menina não conseguia entender bem o que acontecera, era muito pequena. Só sabia que fizera alguma coisa errada, mas ninguém lhe explicou nada. Fora castigada, chamada de menina feia e má, tinha que ficar sentada no quarto escuro sozinha pra aprender a ser boazinha e obediente. No começo ela chorou, gritou, pediu ajuda, mas não veio ninguém, ela estava perdida, sem colo, sem carinho. Também recebia tão poucos abraços e beijos por mais que tentasse ser uma boa menina, ser gente era muito complicado. De repente ela parou e ficou quieta. Lembrou-se da sua mãe dizendo: “você não precisava ter nascido pra eu ser feliz, eu já era feliz com seu pai”. Ela concluiu, então, que já nascera sobrando, não fizera diferença, não trouxera nada de importante pra ninguém. O peito doeu quando ela ouviu aquilo, não tinha noção ainda de que aquela sensação ruim era dor de falta de amor.

Sentia-se muito triste. Descobriu que esse negócio de aconchego era pra gente fraca, e ela não queria mais ser bobona. Preferia ser forte, corajosa e malcriada, não precisava de dengos e de afagos, inclusive entenderia quando ficasse de castigo. Deixou a menina tola e assustada bem lá no fundo, bem escondida, quieta e calada no quarto escuro que havia dentro dela, sim, havia um dentro dela também. Surgiu assim outra, poderosa e decidida, a que não deixaria ninguém mais fazê-la sofrer. Quando saiu do castigo notaram que ela estava mudada, olhos secos e frios, mais petulante, como disse a mãe. Ela saiu desafiadora, fugiu de casa e andou, andou, era livre, até que a encontraram. Comentaram que ela era mesmo estranha e rebelde, que nunca os enganara. Agora era sim, o que lhe importava o que pensavam? Mais nada, tudo resolvido. Dessa vez não foi castigada porque todos é que ficaram assustados e perplexos com sua ousadia. Ouviu sua mãe dizer: “precisamos agir de outra forma com ela daqui por diante, essa menina é diferente mesmo. O que será que eu fiz a Deus?”. É, tudo mudara com certeza.

E assim a menina viveu e cresceu, destemida e respeitada, dura quando precisava ser, era necessário sobreviver. Às vezes chorava escondida, havia coisas que machucavam muito e ninguém era de ferro, mas logo voltava a ser ela mesma, ou pelo menos o que pensava ser.

Com o passar dos anos descobriu a quase inutilidade de tanto esforço, a menina frágil continuara a existir guardada no seu quarto escuro. Ela nunca deixou de fazê-la sofrer de alguma forma, havia muita tristeza recolhida por sua causa, ela nunca deixara de chorar, afinal de contas sua existência lhe fora praticamente negada. Um dia a mulher forte pressentiu condoída sua presença, fechou os olhos e a viu, parada mas ainda viva, esperando que alguém fosse buscá-la. E a mulher começou a cuidar daquela menina cheia de medos e que não pudera ser, que ainda precisava de muito e muitos cuidados, seus agora, porque sempre esteve presente, escondida na névoa da ilusão.

Hoje a mulher já entendeu que lhe é permitido acolher essa criança, e ela já sabe como fazê-lo, com coragem, paciência e amor. Tem noção de que não há como ser uma pessoa inteira e plena se lhe falta um pedaço, talvez o melhor pedaço. E as coisas estão acontecendo devagar, ainda não estão perfeitas e nem completas, não há quem saiba em que dia estarão. Contudo a paz entre elas está estabelecida, entre a mulher poderosa e a menina sensível. O abandono e a culpa já foram transformados em compreensão e em perdão, tantos acontecimentos preciosos e inevitáveis. O caminho poderá ser longo, muito longo, mas vai valer a pena...

Maria Julia Guerra.

Salvador, BA.

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