Roleta Russa (Adeus Ayrton)

Todo mundo viu pela TV. São 14:15 agora. O depoimento frio da doutora italiana, o nosso Ayrton está clinicamente morto. O socorro demorou um tempão. Depois chegaram. Os caras levaram mais um tempão ali no local. O Ayrton estava sendo operado. Traqueostomia. Ele não estava conseguindo respirar. O helicóptero se posicionou para levá-lo. Primeiro Mundo: médicos, macas, macacões coloridos, uma unidade de UTI sobre rodas, o guincho para levar o que sobrou do carro. Finalmente o Ayrton foi colocado no helicóptero e foram para o hospital. No chão, uma poça de sangue. O repórter na TV dizendo pra gente que era devido a um corte apenas. Pela quantidade de sangue não era. Aliás, o que se esperar de quem bate contra o guard-rail de concreto a mais de 300 km/h? O pior. Pensei logo na cabeça, que é de onde vêm todos os comandos.

Limparam a pista. Consternação. Tristeza no Brasil, em São Paulo, muito mais em Tatuí. Os pilotos assumem as suas posições. Nova largada. Começa a brincadeirinha de novo. Lembro-me dos filmes de gladiadores, da arena, das brigas de galo, das lutas de boxe, da roleta russa.

A corrida reinicia como se nada tivesse acontecido. Alguém poderia ter levantado do carro e ter dito, “Não, não tenho mais condições de continuar”. Não. Saiu um, foi colocado de lado, mas a briga continua, a vida continua, o NEGÓCIO continua. Milhões de dólares em jogo. No fundo todos sabem que isso não é legal. Mas apostam nisso. Só ligam pra isso. Isso de querer correr, ganhar, competir, crescer muito, bastante. O sucesso, a fama, a grana. A mídia intervém. Faz você acreditar na importância que tem. Garante que você é alguém. Faço um paralelo (ou talvez o outro lado da moeda) com o Kurt Cobain, do Nirvana. Foi muito pesado todo aquele sucesso que despencou (ou despencaram) sobre a cabeça do rapaz. Também despencaram na cabeça do Ayrton aquela de só viver para vencer. Já que ele era extremamente competente no que fazia. Aquela de ídolo nacional. Já que a gente tem poucos (ou nenhum). E muitos interesses determinaram a manutenção dessa neura. Que passou a ser o ideal do Ayrton. Será?

A roleta russa. O cara coloca uma bala no tambor e fica tentando. Clic: não foi dessa vez. Condenam o suicídio. Ninguém condena essa roleta russa sofisticada e cara que são as corridas de fórmula Um, Indy, etc. Toda vez que um piloto entra num carro desses, é como se ele estivesse apertando contra o ouvido o gatilho de uma arma com apenas uma bala no tambor. Clic: não foi dessa vez. Podium, muita grana, fama. Herói nacional. O Ayrton foi sendo levado de roldão. Mas se ele se levanta e diz, “Vou parar. Tá de bom tamanho. Vou curtir minha lancha em Angra, minha fazenda em Tatuí, meu prédio (em alguns lugar dos USA), minha gata loura...” As pessoas vão crescendo, vão crescendo, crescem tanto que se perdem nelas mesmas. Menos por culpa delas, muito mais pelo que lhes cercam ou pelo que aprendem, pelo contingenciamento. Jovem, muita vida pela frente. E sai assim, dessa forma inesperada e violenta. E nós na arquibancada torcendo. Não vai acontecer o pior. Mas se acontecer, não deixe de rever várias vezes o replay... Paciência. Amanhã arranjam outro herói.

Televisão. Cinegrafistas. Vídeos sobre a vida do grande piloto. Fábrica de pneus. Associação dos fabricantes de carros de corrida. Banco (bonezinho) Nacional. Vendedores de laranja ou sardinha em Interlagos. Todos ganham com o negócio. Quem perde mesmo são os protagonistas. Como perdiam os gladiadores,

Tantas dores,

Adeus Ayrton.

Rio, 01/05/1994

(escrito durante a transmissão pela TV do acidente que vitimou

fatalmente o grande piloto brasileiro Ayrton Senna, em Ímola, na

Itália.)

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 13/04/2009
Código do texto: T1536388
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