Caos

Inúmeras vezes ouvi minha mãe reclamar da desorganização de meu pai, porque vivia perdendo documentos, chaves, pequenos objetos, ou se esquecendo de pagar contas, retornar telefonemas, dar satisfações a quem o procurava...

Um pouco por desleixo, mas muito por uma certa soberba, como se dissesse “se essa pessoa realmente precisar de mim, vai me procurar”, ou “não preciso mesmo disso que não encontro”, ele ia seguindo, altivo; e, contrariamente às aparências, era extremamente organizado dentro de seu caos particular. Não sem ondas de revolta às vezes, mas revolta com os seres invisíveis que perdiam os objetos por ele, e nunca por sua falta de método; jamais. Havia uma certa aura de romantismo na sua oficina entulhada de pequenas peças, ferramentas, retalhos de madeira e máquinas antigas, espalhadas sem critério (ou com um critério particular, insondável para nós, os mortais comuns); havia um certo mistério em sua desorganização, um quê de poeta em seu jeito displicente de tratar o mundo.

Mas os genes me foram cruéis: transmitiram-me de meu pai a sina de viver imersa no caos, mas não a bênção de lidar bem com isso, como ele fazia.

Meu pai se mostrava dono absoluto de sua existência, ainda que mergulhado, como eu, nessa confusão sem fim; e eu sinto que tudo me domina, a chave que perco cem vezes ao dia, as contas que encontro já vencidas numa gaveta qualquer, o documento importante que acabei de ver mas não sei mais onde está, o telefonema que prometi dar mas não dei, o lugar aonde precisava ir mas não fui. A leve promessa que fiz e esqueci de cumprir, o trabalho que largo pela metade para escrever inutilidades, o livro técnico importante que troquei pelo romance que estou relendo pela décima vez. Os prazos que se encurtam, o horário que passa sempre antes, as datas limites que acabam enfim chegando.

É assim que vejo hoje meu mundo de ponta-cabeça: como se eu não conseguisse jamais colocar ordem em nada, por falta de tempo ou de vontade, ou mesmo por não saber de forma nenhuma por onde começar; e sigo meio perdida, porque colocar em ordem objetos e papéis nos dá a sensação de poder sobre nossa vida. Assim percebo, impotente, que não tenho nenhuma, absolutamente nenhuma ingerência sobre ela - ainda que fosse organizada como uma abelha, metódica como uma formiga, ainda assim sei que minha vida seguiria caótica. Porque na bagunça que criei perdi uma coisa importante: a capacidade de organizar meus próprios sentimentos. Não me lembro onde a coloquei, nem mesmo se um dia a possuí...