FRAGMENTOS NUM ÔNIBUS URBANO

FRAGMENTOS NUM ÔNIBUS URBANO

A saída da escola acontece às dezessete horas, o ponto de ônibus fica cerca de trezentos metros. O ônibus passa exatamente as dezessete e seis, o que significa uma corrida rua acima para não ter que esperar meia hora de pé no ponto para tomar o próximo ônibus que passa sempre atrasado e muito mais cheio.

Depois de três anos fazendo esse percurso correndo três quadras depois de quatro horas na sala de aulas lecionando para trinta e oito, quarenta púberes, mais um dia não parece tão difícil assim.

Nesse dia em especial a corrida valeu a pena havia um banco vazio bem na frente; o primeiro banco, aquele que fica logo abaixo do cobrador. Digo abaixo porque estrategicamente os bancos destinados aos trocadores são mais altos para que eles possam vigiar os passageiros enquanto a viagem acontece.

O cérebro latejava, aquela dorzinha enjoada obrigava cerrar os olhos, o ônibus sacolejava parecendo uma centrífuga tentando desenrolar a roupa no seu interior para impor velocidade e expelir a água das fibras. Os solavancos emprestavam uma languidez, olhos cerrados, cabeça recostada, tudo contribuía para uma espécie de transe que pouco a pouco desliga o cérebro dos barulhos costumeiros e induz a ouvir fragmentos de conversas... a Torre de Babel que acontece todos os dias em todos os ônibus urbanos.

Primeiro a insistência de um homem possivelmente embriagado tentando convencer o cobrador que um selo de maço de cigarros achado na rua era um passe: “Eu juro pro senhor que eu encontrei esse passe caído no chão...eu não roubei não “sêo” cobrador é verdade...pega aí “ô” deixa eu passar logo”...

“Isso não é um passe! É um selo de cigarro... ou você paga ou vai ter que descer no próximo ponto”... “mas... escuta aqui cobrador”... “não tem nada de escuta aqui... encosta motorista... vamos desovar esse palhaço”. Os olhos cerrados sequer se deram ao trabalho de abrir para ver a cena.

Toda a movimentação deve ter culminado realmente em expelir o pobre bêbado, porque sua voz cessou e outras entraram naquele canal de comunicação.

“Rapaz, mais o que foi aquilo, o juiz meteu a mão no coitado do verdão ontem...”cê” viu cara. Que pouca vergonha...deve ter dedo de cartola são-paulino naquilo rapaz... não é possível”. “O pior é que tem mesmo, não tem explicação umas barbaridades daquela. Parecia jogo de fazenda, não deu nem graça... larguei tudo e fui dormir tinha que acordar cedo e ficar perdendo sono pra ver aquela porcaria”! As vozes grossas dos torcedores indignados dão lugar a outras vozes femininas. Doces, pausadas, sonhadoras...

“Ele faz tudo que eu quero menina! Eu tenho certeza que ele me ama e quando deixar daquela cobra pra ficar comigo tudo vai ser diferente”... “Tomara minha amiga... torço muito por você... só eu sei o quanto você sofreu nas garras daquele viciado filho de uma p. até que arrebentaram a cabeça dele!” “Eu ainda vou ser feliz... escreve o que estou dizendo”... “que os anjos digam amém”...

O ônibus lotado rompia impassível comendo a distância entre os pontos, os odores de perfume vencido e CC se misturavam. O corredor lotado, onde as pessoas penduradas igual galinhas na manguara se esforçavam para se equilibrar e não pisar nos pés umas das outras. E os sons das conversas se misturavam como se fosse uma banda de músicos surdos onde todos tocavam ao mesmo tempo canções diferentes:

_____ Não... ainda estou pagando as prestações e já estragou!

_____Vou sim... é só eu ter um tempinho dou uma chegadinha lá.

____De jeito nenhum, não quero vê-lo nem pintado de ouro!

____ Nossa!! Melhor impossível! Não gosto nem de falar pra não estragar...

_____Tenha fé irmã que o Senhor vai preparar a prosperidade pra você...Joelho no chão e boca no pó...Ore e confie e Deus proverá!

____Aquela uma lá tem olhos de secar pimenteira... tome cuidado!

____Estou terminando só falta a pintura mudo na semana que vem!

____ Roupa, calçado, comida, remédios; tudo isso com pouco mais de quatrocentos reais...vai dar de que jeito, por isso que eu deixo as crianças na creche e vou trabalhar...

____Mas, você é bonitinha heim, menina !? Quer tomar um sorvete comigo não?

As conversas foram diminuindo, todos se calaram. Nossa! Será que ninguém tem mais nada pra falar! Os olhos cerrados vislumbravam o corredor do ônibus e as poltronas lotadas de pessoas cochilando. A cena do corredor era cômica. Pessoas com um braço pra cima agarradas a balaustra e a cabeça caída com o queixo apoiado no peito cochilando. O silêncio completo foi rompido pelo riso debochado do trocador:

___Kkkkkkkkkk... era só o que faltava...Professora acorda chegamos no ponto final.

"Afff... Sem passe, sem dinheiro e três quilômetros além do ponto de desembarque".

Por Wanderlice de Souza Carvalho. 10/04/2009

wanderlicedsouza
Enviado por wanderlicedsouza em 12/04/2009
Código do texto: T1535663
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