Além da cortina azul

Chegou cedo e encaminhou-se ao camarim para concluir a produção. Na sacola o vestido preto, adquirido após longas horas de caminhada, de loja em loja até encontrar aquele que atendia aos seus critérios de praticidade, conforto e preço acessível. Leva também os sapatos pretos. Olhou-os e lembrou-se de que há muito não usava sapatos como aqueles, com saltos de dez centímetros. Não gostava de saltos, mas é ponto pacífico no mundo feminino que eles melhoram o visual, dão certo charme, e são indispensáveis em ocasiões especiais. E o vestido preto, já havia usado um? Não se lembrava. Mas para tudo, para todas as situações imagináveis, existe a possibilidade de uma primeira vez, mesmo que extemporaneamente.

Vestiu-se com cuidado, evitando desmanchar os cachos dos cabelos, penosamente feitos em longas horas passadas em um salão. Colocou os brincos, em formato de duas delicadas borboletas, escolhidos não ao acaso. Amava as borboletas, não só pela graciosidade e leveza, mas principalmente por representarem a transformação e a liberdade. Simbolizavam o momento que vivia. Ajeitou aqui e ali, calçou os sapatos, mais uma olhada nos cabelos... Tomou distância do grande espelho e mirou-se de alto a baixo. Hum hum... Teria ainda que colocar em cima de tudo uma estranha e disforme peça, a tal beca.

Enquanto os colegas não chegavam, resolveu esperar no auditório. Entrou, parou um instante observando a arquitetura do local que já vira tantas vezes, mas nunca com os olhos que vê hoje. Assim, vazio e silencioso, parece tão grande, e o azul royal das imensas cortinas de veludo que pendem do teto até o tablado parece muito mais belo. Escolheu aleatoriamente uma cadeira, confortável, macia, estofada em tecido azul, e sentou-se. O técnico de som, que testava os equipamentos, colocou uma música instrumental para tocar. Parecia-lhe que havia ali detalhes novos, que valorizavam e embelezavam o ambiente. Não, não eram novos, apenas não havia prestado atenção neles em outras passagens pelo local.

Era um dia especial, talvez por isto via tudo com um olhar de aprovação, de apreciação. Ninguém impôs que estivesse ali. Chegou por escolha própria, com suas próprias pernas, com força de vontade, disciplina e dedicação. Estar ali era uma conquista, uma vitória, uma realização pessoal. Um evento como o que iria acontecer ali é algo natural e corriqueiro na vida de muitas pessoas, mas na dela, não. Era algo excepcional, nunca sonhado nem imaginado em tempos passados. Chegou até ali a duras penas, após três longos anos refazendo o ensino médio para tentar uma bolsa de estudos concedida pelo governo. Conseguiu!

Respirou fundo, fechou os olhos e ficou assim por certo tempo. A suavidade da música e o silêncio no ambiente a transportaram em pensamento a um tempo e local distantes. Ainda com as imagens da grandiosidade e beleza do auditório na mente, comparou aquilo tudo à choupana em que nascera. Lembrou-se da ausência total de qualquer conforto em que vivera com os pais e os três irmãos. O mais velho, nada afeito às agruras do pesado trabalho na agricultura, saiu de casa ainda adolescente, sob o olhar choroso da mãe e o silêncio reprovador do pai, e instalou-se na capital em construção.

Lembrou-se do pai. Não, não conseguia lembrar-se completamente do pai. Nunca conseguiu. Lembra-se apenas de seus pés, muito brancos e inchados, dentro das alpercatas de couro rústico feitas por ele mesmo. O rosto do pai é e sempre será para ela um completo mistério, mas lembra-se de que era homem sereno e afável, e nunca levantava a voz nem a mão para agredir ser vivo algum. Surpreendeu-se ao saber recentemente que era dado à boemia e gostava de tocar viola. Levado precocemente pela doença de Chagas, morreu quando ela ainda era muito pequena, e foi sem deixar nenhuma lembrança de sua passagem pela terra, a não ser os quatro filhos. Extremamente pobre, analfabeto, nunca foi lembrado nem pelos políticos caçadores de eleitores, que naquela época promoviam o registro civil daqueles que não podiam pagar por ele, em troca do famigerado voto. Pelo menos a Igreja não o ignorou, pois realizou seu batismo e o casamento religioso. Nunca possuiu nenhum documento, nem uma fotografia.

A mãe foi alfabetizada, era eleitora. Mulher de personalidade forte, decidida, lutadora e digna, mantinha certo distanciamento dos filhos, nunca conversava com eles, mas os corrigia com pulso firme e fazia tudo o que podia para que tivessem um destino menos perverso que o seu. Dentro dos limites impostos pela pobreza, não só da família mas também do lugar em que moravam, fez com que os filhos estudassem até o último nível de escolaridade conhecido ali, que não era mais que a quarta série do ensino primário. Mesmo assim, ninguém enxergava ali nada que existisse a uma distância maior que um palmo à frente do seu nariz. Não se dispunha de livros, revistas, jornais, rádio, e muito menos televisão. Ignorância, desinformação total, nenhuma visão de mundo, a vida naquele lugar perdido no meio do nada era ingênua e primitiva.

No povoado viveu até que o irmão mais velho se casou e a levou para passar uma temporada em sua casa, na capital. Foi ali que os horizontes começaram a se abrir. Lembrou-se de como achou tudo tão deslumbrante. A iluminação, o asfalto, a água na torneira, as casas tão limpas, sem cheiro de fumaça e de querosene, eram pintadas, tinham telhas, verdadeiros palácios se comparadas ao casebre de madeira e barro, coberto de capim, onde vivia sua família. O cheiro agradável, até então desconhecido, do cipreste que havia no quintal da casa do irmão, ela jamais esquecerá. Ali pela primeira vez ouviu e gostou de um estilo musical agitado, alegre e de mensagem para ela incompreensível, o tal rock. O mundo passava pelas mais significativas mudanças sociais, políticas, comportamentais e científicas desde o Iluminismo.

Entre idas e vindas pode estudar um pouco, mas só após o falecimento da mãe e a mudança definitiva para a cidade é que concluiu o que hoje se conhece por ensino médio. Sabendo que não tinha com que pagar a continuidade dos estudos, e que era tido como impossível a uma pessoa pobre o acesso à universidade pública, tentou o vestibular uma única vez e sem sucesso. E o fez muito mais para desencargo da consciência do que por convicção de que era mesmo aquilo que deveria fazer. Limitações financeiras, parcas informações, pouca visão de futuro, mitos e tradições arraigados. Fechou-se abruptamente um ciclo.

Assim rumou ao destino imposto ao gênero feminino, desde tempos imemoriais até sua geração: casar-se, procriar, cuidar, compreender, aceitar, calar-se, anular-se... Sente certo alívio ao pensar que tal destino, para a atual geração, se impõe com menor força. A inclusão, no vocabulário da mulher, dos verbos informar-se, escolher, decidir, dirigir-se, apesar de tão recente, começa a fazer grande diferença na sociedade. Importantes conquistas e mudanças começam a tomar forma e muito mais está por vir.

Interrompeu os pensamentos e abriu os olhos ao ouvir algumas vozes. Alguns formandos começavam a chegar e entravam tagarelando no auditório. Ao mesmo tempo apareceu o pessoal do cerimonial que os convidou a se dirigirem a uma sala onde deviam vestir a beca. Vão todos a conversar e a sorrir, e após devidamente paramentados voltam ao hall onde estão os fotógrafos e os familiares dos formandos. Seus pensamentos se diluem em meio ao burburinho que reina no local e ela se entrega ao prazer de viver aquele momento.

Convocada para fazer o juramento, subiu calmamente os degraus que levam ao palco, posicionou-se no púlpito colocado ao lado da imensa cortina de veludo azul royal, e de lá passou o olhar rapidamente pelo auditório lotado e silencioso. Sentia-se bem, estava calma e gostava daquela visão inesquecível. Pousou os olhos sobre os colegas de curso, estendeu o braço e pausadamente pronunciou o texto. Exercer a profissão com ética, foi a frase que ficou em sua mente. Ética, ética, ética. Quantas pessoas sabem realmente a extensão do significado desse verbete? Quem liga para a ética neste mundo onde o individualismo é que dirige nossas vidas? Dizer do maior número possível de coisas “é meu” é tudo que queremos, segundo Tolstoi. Verdade inquestionável!

Na volta para casa, já desfeita a magia da cerimônia, pensava na responsabilidade que agora carregaria sobre os ombros. Responsabilidade de quem teve a oportunidade de enxergar um palmo e mais uma polegada à frente do nariz, em um país onde a educação não é direito de todos, mas privilégio de poucos. Sentiu um enorme desconforto ao lembrar-se que além da cortina azul royal há uma imensa plateia de olhos atentos, cravados sobre quem tem o dever de ajudar a descortinar o saber. Pensou nos milhões de olhos incomodamente inertes e silenciosos, calados pelas ideologias que exploram a ignorância e a boa fé, muitas vezes miseráveis e famintos, alguns sem limites e violentos, e todos carentes de quem se interesse e se disponha a enfrentar a difícil, imprescindível e urgente tarefa de ensinar.

Sabia da expectativa e das cobranças que virão sobre ela. Sabia que não estava pronta, mas que além de um diploma, tinha sonhos, projetos, compromissos consigo mesma e vontade de ser útil. Sabia também que os seus melhores dias já haviam passado e se perguntava: será que ainda dá tempo de fazer alguma coisa? Havia sim conseguido sair do zero absoluto e chegar a algum lugar. Tinha enorme vontade de mostrar a tantas pessoas que enfrentam situação semelhante à sua que é possível , que apesar das adversidades, das limitações, o lugar ao Sol de cada um está o aguardando e cabe a cada um conquistar e tomar posse do seu.

Conseguirá ela transpor a cortina de veludo azul royal? Haverá tempo?