EVOCAÇÃO

Tem certos dias que eu me quedo a pensar no tempo que já passou, coisa que as pessoas práticas não fazem porque estão sempre a ver o presente, palpável e factível, mas eu não sou uma pessoa prática e penso muito no pretérito da minha vida e quase sempre me delicio com ele porque revivo momentos deliciosos de minha velha Santo Amaro da Purificação naquela época da minha adolescência e da minha juventude, que foram marcadas por uma pobreza decente e por peraltices que causariam inveja aos adolescentes e jovens de hoje. “Lembrar o passado é viver duas vezes”.

Revivo, por exemplo, uma cidade limpa, pacata, tranqüila, absolutamente tranqüila, sem assaltos, sem crimes, sem maconha, sem cocaína, sem traficantes. Os foguetes pipocavam nos céus de nossa Terra, somente para anunciar festejos religiosos, ou cívicos; as pessoas, ao calor asfixiante do nosso verão, dormiam, muitas daquelas, com suas janelas abertas; tia Dosanjos (professora Maria Dosanjos de Salles Brasil, de saudosa memória) foi exemplo e eu testemunhei: os guardas noturnos (meu Deus, minha Terra daquela época, que não tinha ladrão, tinha guarda noturno!) que faziam a ronda nas caladas da noite, alertavam-na com um leve toque na janela: – Professora! A janela está aberta. Ao que ela respondia: obrigada, seu guarda. E continuava dormindo o sono dos justos.

Briga de rua! havia, mas somente entre adolescentes, que brigavam de manhã e faziam as pazes de tarde; era uma afirmação de masculinidade, de força, de coragem. Eu briguei muito na minha adolescência, mas todos os meus contendores continuaram sendo meus amigos e os são até hoje (os que estão vivos, naturalmente). Os adolescentes de hoje já não brigam como nós adolescentes de ontem brigávamos, de fazer a roda para ver quem ganhava, e logo depois amigos de novo, aliás, nós éramos todos cúmplices de brincadeiras que, às vezes, terminavam em porrada, os de hoje estão preocupados com o sexo desmedido e com outras coisas mais, e os que brigam, o fazem a mão armada, não brigam assaltam. Eu particularmente achei salutar as nossas brigas de adolescente.

Revivo uma época em que as autoridades residiam na minha Terra: Juizes de Direito, Delegados Regionais, Promotores, conviviam na nossa sociedade participando da vida da cidade; seus filhos cresciam aqui,estudavam aqui, quando não nasciam aqui. A minha Terra tinha quem zelasse por ela.

Revivo uma cidade silenciosa, os sons que se ouviam dos serviços de alto-falantes de Célio Machado não incomodavam ninguém e o assovio de Popó tocando os burros que puxavam o trole, enchia de poesia a nossa Rua Direita. Os jovens de hoje não sabem o que foi uma seresta, porque seresta hoje é outra coisa. As nossas serestas despertavam paixão nos corações das donzelas adormecidas, cortando o silêncio das nossas madrugadas frias, ao som dos maviosos violões de Dilo Lopes, Ruy Argôlo, Branco Rusguento, do saxofone afinado e choroso de Sinhozinho, das melodiosas vozes de Benedito Barbosa, Lulu Parola, Antônio Wilson de Usêda, dos irmãos José Raimundo e João Alberto Teixeira, de Zezito Dente de Barrão, de Jair Ferreira, de Toninho Mesquita cantando e recitando poemas de amor, e tantos outros, que o tempo inexoravelmente os levou.

Revivo uma comunidade inteira de pessoas que se conheciam quase na intimidade, e, sempre, de portas e corações abertos aos visitantes: – pode entrar que a casa é sua.

. Eu sei que tudo isso é quase impossível hoje em dia, mas era muito bom.

“Nós éramos felizes e não sabíamos”.

Raymundo de Salles Brasil
Enviado por Raymundo de Salles Brasil em 10/05/2006
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