Exercício Alegórico
Como são bons os dias que nos trazem agradáveis surpresas.
O primeiro período de trabalho terminara monótono como sempre.
Aquele jovem senhor não saía e sim fugia para almoçar num restaurante natural, que ficava a uns trezentos metros de seu local de trabalho e próximo a uma praça, onde aposentados jogavam cartas ou conversa fora.
Sua rotina era: almoçar e sentar num daqueles bancos da praça; tentar esquecer que, ainda teria outro período de trabalho; e, se possível tombar a cabeça. Tombos resultantes de rasteiras dadas por aquele sono incontrolável, que bate depois do almoço.
Entrou no restaurante, serviu-se e, como não tinha nenhuma mesa vazia, sentou-se junto a um senhor, cujo grisalho da escassa cabeleira e as rugas da face indicavam já ter vivido mais de setenta. Mal dera a primeira garfada, foi interrompido pelo setuagenário com as perguntas: tu já ouviste falar em Nelson Gonçalves? Já escutaste alguma de suas canções?
O jovem respondeu-lhe lembrar de seu pai escutando-as e de uma composição, que falava da volta de um homem para a boemia.
A impaciência do jovem não inibiu a fala daquela companhia, até então, tida como inoportuna, que começou a contar uma de suas lembranças
Aquilo que inicialmente parecia inoportuno começou a tornar-se agradável ao jovem e, percebendo essa situação, o contador de memórias desandou a falar.
Sempre achei aqueles versos uma linda declaração de amor, mas sem qualquer relação com a realidade. Apesar disso, acredito que todos na sua juventude, fase dos sonhos e da fantasia, constroem a sua mulher utópica, com base nos mitos femininos da época.
Apesar de ambos terem encerrado suas refeições, a conversa só foi interrompida com o aviso do garçom de que outros esperavam por lugares.
O planejado cochilo foi substituído, no mesmo banco da praça, pela continuidade das memórias daquele, agora percebido, como um “jovem setentão”
Sentados e acompanhados pelo burburinho das praças, as memórias nunca foram tão bem-vindas.
Certa vez fui surpreendido por um questionamento de minha mulher, sobre um comportamento que julgava muito estranho. O de estar sempre observando as mulheres, como se procurasse alguma coisa, como se quisesse encontrar algo.
Sua observação era muito válida, pois jamais abandonei aquele exercício alegórico de construir mulheres.
É uma atividade como a de garimpar. Os olhos, como uma bateia, separam retalhos de beleza encontrados e, como num quebra cabeças, num processo de tentativas e de sucessivas aproximações, nossas mentes geram essas imagens, essas ilusões em forma de mulher.
Embalado naquele encontro prazeroso o contador foi interrompido, quando iniciava outra história, outra lembrança.
Interrompeu o jovem: senhor, sinto muito, mas já estou atrasado. Caso seja possível gostaria de almoçar outras vezes com sigo. Estou sempre neste mesmo horário e neste mesmo restaurante.
Como velhos amigos abraçaram-se.
Ás pressas, o jovem senhor dirigiu-se ao seu local de trabalho, pensando: bela surpresa este encontro; essa história é um excelente material para preencher a ociosidade compulsória no meu local de trabalho, fazendo rimas.
“Mulher Fantasia” são as rimas geradas a partir da história narrada por um jovem setuagenário e, também, um original escultor de mulheres.
Mulher Fantasia
Mulher que:
não anda, desfila;
não ri, ilumina;
não fala, declama;
e tem, no olhar, pura chama.
Mulher que:
não toca, afaga;
e sua pele, como a flor,
perfume exala,
em convites ao amor.
Mulher que:
não reclama, não chia;
é só compreensão;
e é sempre companhia,
seja qual for a missão.
Homem que:
não pensa; e sonha
encontrar um dia,
no carnaval da vida
essa Mulher Fantasia,
essa Mulher Fantasia,
essa Mulher Fantasia...