Dançar forró em Buenos Aires
Para Luciene
Por dois anos seguidos cortou as despesas extras, parou de freqüentar cinemas, teatros, bares e restaurantes, deixou de assinar o jornal diário e a revista semanal, abandonou os churrascos com os vizinhos, trocou o carro de ar condicionado e direção hidráulica em um automóvel mais simples. A única coisa de que não abria mão: os forrós que aconteciam nas noites de sexta-feira, sábado e vésperas de feriados.
Percebendo a mudança de hábitos da filha, a mãe quis saber o que acontecia.
- Vou dançar forró em Buenos Aires.
No início, a velha riu bastante, compartilhou a informação com o marido, acrescentando que provavelmente a filha atravessava alguma crise financeira sobre a qual não gostaria de compartilhar, mas depois percebeu que, num cofre em formato de sofá, juntava desde cédulas de grande valor até moedas de um centavo.
- Todo dinheiro é importante, frisava quando a mãe presenciava sua economia.
A mãe preocupou-se com a viagem. Se ela, que gostava de bater perna, ainda não viajara ao exterior, como a filha viajaria? A preocupação cedeu lugar à alegria na medida em que, consultando as páginas de busca na internet, descobriu que o dinheiro brasileiro valia muito mais do que o argentino e, consequentemente, a filha poderia trazer presentes. Não se fez de rogada: entregou uma lista de três páginas.
– Coisas pequenas, falava a mãe.
Não se pode afirmar que o trecho entre Assis e Buenos Aires, principalmente depois da entrada no território argentino, representasse o glamour com o qual sonhara. Pelo deserto de aproximadamente dois mil quilômetros, pensava-se jogada nos confins do Mato Grosso. Numa viagem de aventura, percorrera setenta quilômetros numa estrada na qual não atravessara um único veículo e ao lado da qual, pastos intermináveis contrastavam com os coqueiros praieiros.
Se o trajeto se mostrara deprimente, a chegada e a permanência de uma semana na capital de Borges e de Cortazar, considerada a mais européia da América Latina, mostrara-se inesquecível. Hospedada no silencioso bairro de San Telmo, descobriu alguns cafés que serviam desde comidas mais preparadas até chás e pães importados, livrarias e sebos a cada cinco quadras e, a três quarteirões do hotel, uma escola de dança que aceitava alunos claudicantes.
Começara as aulas na mesma noite em que se matriculara. Um homem de mãos engraçadas segurava-lhe a cintura, olhava-a nos olhos e de meios em meios pedia-lhe que relaxasse o corpo para conduzi-la. Porém, por uma peculiaridade desconhecida, o corpo da parceira insistia em trejeitos estranhos, em passos esquisitos, e, ao mesmo tempo, coreografias contagiantes. Por mais que quisesse e se dedicasse, o corpo da parceira transpirava forró.
Conversaram sobre esse problema, pensaram em soluções. Como as conversas se tornassem constantes e os problemas não se resolvessem, os diálogos transformaram-se em gritos e as soluções em enfrentamentos irascíveis. Em um desses enfrentamentos, a tomou nos braços e beijou-a sob olhares cúmplices e aplausos discretos.
A paixão dela pelo forró não diminuiria; a dele, pelo tango, continuaria inabalável. Decidiram manter o relacionamento amoroso incipiente.
Outro dia os visitei em Paris. Verdade que nunca mais ela dançou forró e ele abandonou os alongamentos diários para o tango. Optaram pela música eletrônica francesa e outros ritmos barulhentos do Velho Mundo. Abandonam-se paixões individuais na manutenção de um sentimento comum.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 9 de abril de 2009.