A SEMANA SANTA
Morávamos em Visconde de Rio Branco, cidade do interior de Minas, na Zona da Mata e a família era católica. Era uma época em que no Brasil havia mais igrejas católicas, então a Semana Santa era marcante. Estou lembrando um tempo em que eu tinha seis anos. As igrejas de Minas são muito bonitas e concorridas pelas famílias.
E Rio Branco me lembra muito a beleza e a tragédia da Semana Santa. Lembra muitas coisas bonitas. O respeito entre as pessoas na cidade. Os acontecimentos religiosos eram, a meu ver, também meio sociais e teatrais. A banda. O Terço. O véu branco das meninas e moças. O véu negro das mães. Quando íamos à missa, na porta da igreja eu botava o meu véu na cabeça com sensação de solenidade e pureza, era um ritual, meio que tabu inquestionável por mim, achava bonito e me distinguia aquele ato, uma reverência que me enaltecia. Só na adolescência que comecei a pensar porque os homens mais importantes, feito o meu pai, diretor do Grupo Escolar e outras autoridades ficavam no limiar da porta da igreja e, ao contrário das mulheres sentadas nos bancos no interior da igreja,e eles, respeitosamente, tiravam os chapéus e ficavam lá fora, principalmente na hora do sermão do padre, no púlpito. Este momento era ruim, pois eu não prestava atenção no que dizia o padre.
Minha Vó Queta (diminutivo de Henriqueta) era uma linda avó de cabelos brancos, presos atrás, olhos azuis, grandes como um lago. Havia uma doçura tão serena naqueles olhos. Ela era viúva e morara com meu Tio Prudente, seu filho mais velho e os dois eram inseparáveis, em Petrópolis. Mas a mulher do meu tio, a Tia Julieta era uma mulher mandona e houve alguma questão familiar e minha avó foi para a nossa casa em Rio Branco, pra casa da sua filha mais moça Zezé, a minha mãe.
Lembrar da Vó Queta é tão bom quanto se lembrar de Cristo. Minha mãe não demonstrava gestos de emoção, mas na verdade ficou sofrendo do coração a partir deste sofrimento da mãe dela. A gente é pequena, mas pesca tudo. Ou seja, sente tudo.
Mas aconteceu da minha avó adoecer e morrer docemente. Enquanto doente íamos ao quarto dela eu e meu irmãozinho caçula e ficávamos algum tempo com ela, na sua cabeceira com as cabeças junto ao travesseiro dela, um de cada lado. Este momento na minha vida de seis anos é muito doce e eu tinha uma percepção das coisas, diferente dos meus familiares. Eu olhava nos olhos de Vó Queta e ela falava palavras suaves e doces. Seu olhar era um banho de amor.
Eu “sabia” que ela ia terminar, não sei como, mas achava que ela já estava dando adeus a nós. Ficávamos ali, um bem, não sei o que ela falava, mas eram coisas ou apenas sua expressão e proximidade, que me passava o bem e um estado de felicidade. E da compreensão. Seu rosto era de uma pele clara, lisa e limpa, e ela tinha uma pequena feridinha próximo ao lábio.
Todos de casa falavam na Vó Queta em voz baixa e respeitosa. Talvez já soubessem do que a aguardava.
E no último dia que estive com ela, alguém nos levou pela mão eu e meu irmãozinho para a cama dela e ali nos deixou um pequeno tempo a sós com ela. Encostamos nossas cabeças na dela, e a pegamos com nossas mãozinhas. Como nossa. Olhei em seus olhos e ela me olhou passando um bem. Me inclinei e lhe dei um beijo na face, quase junto aos lábios e por cima da feridinha, para ela saber que aquilo não me afastava dela. Eu já sentia as coisas como sinto hoje.
E beijo e abraços não havia entre nós da família. Sempre fiquei com a impressão que todos os mineiros são assim. Mas na verdade não sei se é mesmo. Mas este foi o meu primeiro beijo, um gesto natural de amor. Eu nunca vira ninguém se beijar, nem dar, nem receber. E eu agi por mim.
Confundo muito meu filho Gabriel com meu irmão caçula Gabriel. Os dois são parecidos desde criança até agora que meu filho virou homem.
Tenho certeza que este encontro de netos e avó foi perfeito. Alguém nos buscou e nos levou. Eu não sabia da morte. Mas sabia que aquela era a última vez. Minha mãe sentiu, mas ocultava da gente sua emoção. Passou a vestir preto o resto da vida e parou de ir à igreja. Por rancor de Deus ter lhe levado a mãe. Não perdoava Deus. Só muitos anos depois ela perdoou Deus e voltou a ir à missa e rezar. Acho que Vó Queta morreu perto da época da Semana Santa. Sei que a procissão de Encontro passava em frente de nossa casa. E, bem defronte da nossa casa, aconteceu o Encontro de Mãe e Filho. Eram duas procissões: uma saia da Igreja Matriz com a imagem de Jesus carregando a cruz em direção ao Calvário era “Nosso Senhor dos Passos”. E da outra igreja vinha a imagem de “Nossa Senhora das Dores”, sua Mãe, com o coração atravessado por uma espada. Quando se encontravam paravam. Há um silêncio no Encontro. Total. É noitinha. Este encontro trágico de mãe e filho se deu bem defronte de nossas janelas: e minha mãe se pos a gritar, gritos lancinantes, e um choro que não tinha consolo. Tudo era muito trágico. A criança respeita o que não entende, mas sente e cala. O adulto solta sua emoção pela compreensão da vida. Bom, aí era uma choradeira... As duas procissões seguiam juntas. Depois os meninos tocavam as matracas. É um som muito doloroso. E depois a banda da igreja tocava, atrás.
Eu sempre fiquei em suspenso.
Morávamos em Visconde de Rio Branco, cidade do interior de Minas, na Zona da Mata e a família era católica. Era uma época em que no Brasil havia mais igrejas católicas, então a Semana Santa era marcante. Estou lembrando um tempo em que eu tinha seis anos. As igrejas de Minas são muito bonitas e concorridas pelas famílias.
E Rio Branco me lembra muito a beleza e a tragédia da Semana Santa. Lembra muitas coisas bonitas. O respeito entre as pessoas na cidade. Os acontecimentos religiosos eram, a meu ver, também meio sociais e teatrais. A banda. O Terço. O véu branco das meninas e moças. O véu negro das mães. Quando íamos à missa, na porta da igreja eu botava o meu véu na cabeça com sensação de solenidade e pureza, era um ritual, meio que tabu inquestionável por mim, achava bonito e me distinguia aquele ato, uma reverência que me enaltecia. Só na adolescência que comecei a pensar porque os homens mais importantes, feito o meu pai, diretor do Grupo Escolar e outras autoridades ficavam no limiar da porta da igreja e, ao contrário das mulheres sentadas nos bancos no interior da igreja,e eles, respeitosamente, tiravam os chapéus e ficavam lá fora, principalmente na hora do sermão do padre, no púlpito. Este momento era ruim, pois eu não prestava atenção no que dizia o padre.
Minha Vó Queta (diminutivo de Henriqueta) era uma linda avó de cabelos brancos, presos atrás, olhos azuis, grandes como um lago. Havia uma doçura tão serena naqueles olhos. Ela era viúva e morara com meu Tio Prudente, seu filho mais velho e os dois eram inseparáveis, em Petrópolis. Mas a mulher do meu tio, a Tia Julieta era uma mulher mandona e houve alguma questão familiar e minha avó foi para a nossa casa em Rio Branco, pra casa da sua filha mais moça Zezé, a minha mãe.
Lembrar da Vó Queta é tão bom quanto se lembrar de Cristo. Minha mãe não demonstrava gestos de emoção, mas na verdade ficou sofrendo do coração a partir deste sofrimento da mãe dela. A gente é pequena, mas pesca tudo. Ou seja, sente tudo.
Mas aconteceu da minha avó adoecer e morrer docemente. Enquanto doente íamos ao quarto dela eu e meu irmãozinho caçula e ficávamos algum tempo com ela, na sua cabeceira com as cabeças junto ao travesseiro dela, um de cada lado. Este momento na minha vida de seis anos é muito doce e eu tinha uma percepção das coisas, diferente dos meus familiares. Eu olhava nos olhos de Vó Queta e ela falava palavras suaves e doces. Seu olhar era um banho de amor.
Eu “sabia” que ela ia terminar, não sei como, mas achava que ela já estava dando adeus a nós. Ficávamos ali, um bem, não sei o que ela falava, mas eram coisas ou apenas sua expressão e proximidade, que me passava o bem e um estado de felicidade. E da compreensão. Seu rosto era de uma pele clara, lisa e limpa, e ela tinha uma pequena feridinha próximo ao lábio.
Todos de casa falavam na Vó Queta em voz baixa e respeitosa. Talvez já soubessem do que a aguardava.
E no último dia que estive com ela, alguém nos levou pela mão eu e meu irmãozinho para a cama dela e ali nos deixou um pequeno tempo a sós com ela. Encostamos nossas cabeças na dela, e a pegamos com nossas mãozinhas. Como nossa. Olhei em seus olhos e ela me olhou passando um bem. Me inclinei e lhe dei um beijo na face, quase junto aos lábios e por cima da feridinha, para ela saber que aquilo não me afastava dela. Eu já sentia as coisas como sinto hoje.
E beijo e abraços não havia entre nós da família. Sempre fiquei com a impressão que todos os mineiros são assim. Mas na verdade não sei se é mesmo. Mas este foi o meu primeiro beijo, um gesto natural de amor. Eu nunca vira ninguém se beijar, nem dar, nem receber. E eu agi por mim.
Confundo muito meu filho Gabriel com meu irmão caçula Gabriel. Os dois são parecidos desde criança até agora que meu filho virou homem.
Tenho certeza que este encontro de netos e avó foi perfeito. Alguém nos buscou e nos levou. Eu não sabia da morte. Mas sabia que aquela era a última vez. Minha mãe sentiu, mas ocultava da gente sua emoção. Passou a vestir preto o resto da vida e parou de ir à igreja. Por rancor de Deus ter lhe levado a mãe. Não perdoava Deus. Só muitos anos depois ela perdoou Deus e voltou a ir à missa e rezar. Acho que Vó Queta morreu perto da época da Semana Santa. Sei que a procissão de Encontro passava em frente de nossa casa. E, bem defronte da nossa casa, aconteceu o Encontro de Mãe e Filho. Eram duas procissões: uma saia da Igreja Matriz com a imagem de Jesus carregando a cruz em direção ao Calvário era “Nosso Senhor dos Passos”. E da outra igreja vinha a imagem de “Nossa Senhora das Dores”, sua Mãe, com o coração atravessado por uma espada. Quando se encontravam paravam. Há um silêncio no Encontro. Total. É noitinha. Este encontro trágico de mãe e filho se deu bem defronte de nossas janelas: e minha mãe se pos a gritar, gritos lancinantes, e um choro que não tinha consolo. Tudo era muito trágico. A criança respeita o que não entende, mas sente e cala. O adulto solta sua emoção pela compreensão da vida. Bom, aí era uma choradeira... As duas procissões seguiam juntas. Depois os meninos tocavam as matracas. É um som muito doloroso. E depois a banda da igreja tocava, atrás.
Eu sempre fiquei em suspenso.