Desafio Literário: Coisas de Mãe

Desafio Literário: Coisas de Mãe

suzabarbi@hotmail.com

Estava com o casamento marcado.

Convites distribuídos.

Presentes chegando.

Na véspera, justo na véspera do casório, a avó morre.

Tristeza geral.

A mãe se desmanchava em chorar.

Chorava pela filha que ia se casar perto de acontecimento tão triste.

Chorava pela mãe que tinha ido.

Desmarca, não desmarca o casamento.

Uns a favor, outros contra.

Resolveram: cancelariam a festa, mas o casamento não tinha jeito.

No dia seguinte, a filha subiria ao altar.

E na hora marcada, lá estava ela abatida e triste, entrando na igreja de mãos dadas com o pai.

No altar, a mãe cheia de maquiagem para disfarçar as olheiras de noite tão mal dormida.

Ela partiu para a lua de mel levando um único presente dado às pressas pela mãe:

- Não conseguimos realizar a sua festa de casamento, mas aqui está uma lembrança para você comemorar com seu marido esta noite.

Assim que se acomodou no hotel, abriu o embrulho.

Dentro havia uma caixa cheia de bombons de uva e uma garrafa do mais fino espumante.

Ela chorou um Mississipi pensando no carinho e na dor da mãe.

Voltou correndo na manhã seguinte para o colo dela.

Lua de mel?

Só depois que a dor passasse.

Tempos depois, a mãe não parava de perguntar se a filha tinha acertado com o padre a cerimônia do casamento.

- Manhê! Já cansei de te falar que o Padre Jerônimo não quer aceitar o pagamento!

- Dá o dinheiro pra igreja então! Dever padre dá azar!

- Manhê! Dever ninguém dá sorte!

Mas o tempo foi passando, a vida complicando e ela se esqueceu de doar o dinheiro para a igreja.

Três anos depois, ela, frente a frente com a mãe, diz:

- Eu e Serginho estamos separando...

A mãe, sem levantar os olhos do tricô, pergunta:

- Isso é um pedido de conselho ou um comunicado?

- Um comunicado.

- Não falei que não pagar o padre dava azar?

- Manhê!!!!!!

Anos depois, ela na maior alegria, conta que está apaixonada e que vai se casar.

- Casar como? A mãe pergunta.

- Ué, vamos morar juntos!

A mãe, frequentadora assídua da igreja do bairro, sem dizer nada, vai conversar com o padre capelão.

Afinal, ajudava no bazar, levava comida pro padre, fazia bolinhos para a creche.

Ele não haveria de negar-lhe o pedido.

- Minha filha vai se casar de novo. Gostaria que o senhor abençoasse o casal.

- O que Deus uniu o homem não separa! Não posso abençoar uma união que Deus desaprova.

- Desaprova? Pois sim!

Saiu de lá furiosa, não sem antes passar a mão na cumbuquinha de doces que tinha levado para ele.

No dia seguinte, entrou num centro espírita puxando o novo casal pelas mãos.

E lá dentro escutou do dirigente da mesa:

- Quem me dera poder abençoar alguém. A benção é um dom divino e exclusivo de Deus. Mas posso desejar toda a sorte do mundo a eles.

Saiu de lá sorrindo.

Nunca mais ajudou padre nenhum.

Em compensação, tornou-se figurinha carimbada nas campanhas do quilo.

Aos 90 anos, ganhou uma bela festa surpresa.

Dançou até tango.

Uma alegria só.

Mas a vida já não era mais tanta energia.

A vista foi ficando curta, as pernas fracas, o equilíbrio mambembe.

Precisava de cuidados.

Um dia, já quase sem enxergar, puxou uma cadeira e falou para a filha:

- Vem cá! Mais pra perto. Tenho que te ensinar um ponto novo de tricô.

Aos 90 anos, ainda tinha algo novo para ensinar.

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Réplica ao desafio lançado pela nossa amiga e grande talento Maith: Coisas de Mãe.

Álvaro Luís:

http://www.recantodasletras.com.br/humor/1527290

Maith:

http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/1526374

Flávio de Souza:

http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/1526892

Isak Damasio:

http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/1535857