Orlando
O Professor Orlando leccionava Anatomia I ao primeiro ano do curso de Medicina Veterinária da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Viera de Angola como retornado tal como cinquenta por cento dos docentes daquela instituição.
Era um ser surreal. Sempre sorridente, balbuciando um discurso semi-disconexo e absurdo, raiando o ridículo. A sua completa falta de lógica enchia-nos de terror pois deste homem dependia a avaliação na cadeira de importância vital do início do curso.
Os exames eram uma Roleta Russa. Independentemente das horas de estudo ou dos conhecimentos adquiridos era imprevisível quem passava ou reprovava. E toda a gente o sabia. No entanto, o medo fazia-nos estudar com desmesurado afinco.
O estado de espírito no dia do exame era de pânico total. De manhã éramos submetidos a uma prova prática, na qual dissecávamos uma área dos músculos de uma cabra conservada em formol, e à tarde éramos interrogados sobre a matéria teórica que essencialmente consistia em pegar num dos ossos do esqueleto de vaca e descreve-lo ao pormenor.
Começou por correr mal o facto de a minha cabra estar mal conservada. Começava a exalar um cheiro a putrefacção que dificultava o trabalho. Quando tinha já os músculos separados e identificados o Professor Orlando abeirou-se de mim com ar visivelmente enjoado. Respondi como pude o melhor que sabia. Ele não deixava transparecer se estava a acertar ou errar nas respostas. Permaneceu altivamente enfastiado com a minha explanação. No fim como um autêntico César misericordioso disse: “ Isto está mais para o não que para o sim. Como ainda estamos no primeiro dia e não apetece começar já a reprovar, venha à tarde e logo se verá”...
Chorei as duas horas que tive para almoçar. Mais valia que me tivesse mandado para casa ao invés de ser sujeita àquele suplício.
Fui a segunda a ser chamada e, para minha surpresa, Orlando elogiou-me efusivamente. Estava encantado com a minha sabedoria. Que bem que descrevia as fossetas, as apófises, as concavidades, as reentrâncias daquele complexo osso que era o Esfenóide. Eu até sabia o que era a Cela Turca!
O anfiteatro estava cheio de alunos. Os do meu ano que esperavam a sua vez para a tortura e os do ano transacto que vinham assistir ao circo. No fim da minha oral todos acreditaram que iria sair dali o primeiro vinte do ano. Treze foi a nota atribuída pois no fim do dia o Professor já não se lembrava de quem era quem. Aconteceu assim com toda a gente. Ninguém se incomodou muito porque o alívio de passar a prova era tal que tanto fazia ter nota alta ou baixa. Nos anos que se seguiram foi a minha vez de assistir ao espectáculo da plateia. Muito me ri nesses dias inesquecíveis. O melhor exame de sempre foi o da colega Dionísia.
O Professor Orlando já satisfeito com a discrição do osso que à moça tinha calhado em sorte, passa para os órgãos.
“ Vamos falar do aparelho reprodutor feminino. Que é tão importante para a preservação da espécie. Aqui a menina Dionísia que é uma bela moça tem de começar a pensar nisso... Ora diga lá: o que vem a seguir à vulva? “
A rapariga estava completamente à toa. A plateia ria ás gargalhadas.
“ Vamos, pense! Então? Olhe para si!”
O anfiteatro quase que vinha abaixo.
“ A vagina, pois com certeza!”
No meio das gargalhadas que o professor aceitava com agrado como se fossem de júbilo pela sua sabedoria, entra na sala um decrépito professor que tinha quase cem anos. Apesar de completamente senil, era de tal modo idolatrado pelos seus pares, que tinha a seu cargo a docência de uma cadeira de anatomia do sistema nervoso central. O velhote vinha desorientado sem saber onde tinha ido parar.
“ Ora meu querido e amigo professor Graça, Bem-vindo aos meus exames. Entre e ponha-se à vontade. Eu estava aqui a falar da glândula mamária...”
“ Pois, pois, gosto muito da glândula mamária...” disse muito baixinho “ mas associada à hipófise! “
Novo ataque de riso colectivo que parece ter assustado o fantasma pós-humano que deu meia volta e desapareceu.
“ Muito bem! Passemos aos intestinos. Menina: como é que são as fezes de cabra? E de vaca? E como são as fezes humanas? Por exemplo: as suas!”
Eu já não aguentava mais. As lágrimas rolavam-me pelas faces. Era muito humor para um dia só.
Voltei no dia seguinte e repeti a dose de diversão impagável.
Foi o último ano de exames extraordinários. De caricatura cómica Orlando passou a figura trágica quando se lhe suicidou o filho com vinte anos. O sentimento de escárnio que os alunos lhe devotavam deu lugar a uma profunda simpatia pois era no meio de nós que encontrava algum conforto para a sua perda.
O Professor Orlando leccionava Anatomia I ao primeiro ano do curso de Medicina Veterinária da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Viera de Angola como retornado tal como cinquenta por cento dos docentes daquela instituição.
Era um ser surreal. Sempre sorridente, balbuciando um discurso semi-disconexo e absurdo, raiando o ridículo. A sua completa falta de lógica enchia-nos de terror pois deste homem dependia a avaliação na cadeira de importância vital do início do curso.
Os exames eram uma Roleta Russa. Independentemente das horas de estudo ou dos conhecimentos adquiridos era imprevisível quem passava ou reprovava. E toda a gente o sabia. No entanto, o medo fazia-nos estudar com desmesurado afinco.
O estado de espírito no dia do exame era de pânico total. De manhã éramos submetidos a uma prova prática, na qual dissecávamos uma área dos músculos de uma cabra conservada em formol, e à tarde éramos interrogados sobre a matéria teórica que essencialmente consistia em pegar num dos ossos do esqueleto de vaca e descreve-lo ao pormenor.
Começou por correr mal o facto de a minha cabra estar mal conservada. Começava a exalar um cheiro a putrefacção que dificultava o trabalho. Quando tinha já os músculos separados e identificados o Professor Orlando abeirou-se de mim com ar visivelmente enjoado. Respondi como pude o melhor que sabia. Ele não deixava transparecer se estava a acertar ou errar nas respostas. Permaneceu altivamente enfastiado com a minha explanação. No fim como um autêntico César misericordioso disse: “ Isto está mais para o não que para o sim. Como ainda estamos no primeiro dia e não apetece começar já a reprovar, venha à tarde e logo se verá”...
Chorei as duas horas que tive para almoçar. Mais valia que me tivesse mandado para casa ao invés de ser sujeita àquele suplício.
Fui a segunda a ser chamada e, para minha surpresa, Orlando elogiou-me efusivamente. Estava encantado com a minha sabedoria. Que bem que descrevia as fossetas, as apófises, as concavidades, as reentrâncias daquele complexo osso que era o Esfenóide. Eu até sabia o que era a Cela Turca!
O anfiteatro estava cheio de alunos. Os do meu ano que esperavam a sua vez para a tortura e os do ano transacto que vinham assistir ao circo. No fim da minha oral todos acreditaram que iria sair dali o primeiro vinte do ano. Treze foi a nota atribuída pois no fim do dia o Professor já não se lembrava de quem era quem. Aconteceu assim com toda a gente. Ninguém se incomodou muito porque o alívio de passar a prova era tal que tanto fazia ter nota alta ou baixa. Nos anos que se seguiram foi a minha vez de assistir ao espectáculo da plateia. Muito me ri nesses dias inesquecíveis. O melhor exame de sempre foi o da colega Dionísia.
O Professor Orlando já satisfeito com a discrição do osso que à moça tinha calhado em sorte, passa para os órgãos.
“ Vamos falar do aparelho reprodutor feminino. Que é tão importante para a preservação da espécie. Aqui a menina Dionísia que é uma bela moça tem de começar a pensar nisso... Ora diga lá: o que vem a seguir à vulva? “
A rapariga estava completamente à toa. A plateia ria ás gargalhadas.
“ Vamos, pense! Então? Olhe para si!”
O anfiteatro quase que vinha abaixo.
“ A vagina, pois com certeza!”
No meio das gargalhadas que o professor aceitava com agrado como se fossem de júbilo pela sua sabedoria, entra na sala um decrépito professor que tinha quase cem anos. Apesar de completamente senil, era de tal modo idolatrado pelos seus pares, que tinha a seu cargo a docência de uma cadeira de anatomia do sistema nervoso central. O velhote vinha desorientado sem saber onde tinha ido parar.
“ Ora meu querido e amigo professor Graça, Bem-vindo aos meus exames. Entre e ponha-se à vontade. Eu estava aqui a falar da glândula mamária...”
“ Pois, pois, gosto muito da glândula mamária...” disse muito baixinho “ mas associada à hipófise! “
Novo ataque de riso colectivo que parece ter assustado o fantasma pós-humano que deu meia volta e desapareceu.
“ Muito bem! Passemos aos intestinos. Menina: como é que são as fezes de cabra? E de vaca? E como são as fezes humanas? Por exemplo: as suas!”
Eu já não aguentava mais. As lágrimas rolavam-me pelas faces. Era muito humor para um dia só.
Voltei no dia seguinte e repeti a dose de diversão impagável.
Foi o último ano de exames extraordinários. De caricatura cómica Orlando passou a figura trágica quando se lhe suicidou o filho com vinte anos. O sentimento de escárnio que os alunos lhe devotavam deu lugar a uma profunda simpatia pois era no meio de nós que encontrava algum conforto para a sua perda.