Ingratidões da Vida

"Cada um sabe a dor e a delícia de ser como e quem é", já dizia Caetano Veloso, meu ídolo. Não necessariamente com as mesmas palavras, mas o fato é que não consigo deixar de pensar nas coisas que enfrentamos na vida.

Bastaria nascer em um lar que, no mínimo, suprisse todas as necessidades básicas de um ser humano tido como "normal" (leia-se família: mãe, pai, irmãos, avós, tios, primos que se reúnem, ao menos uma vez ao mês para um almoço e datas comemorativas, que trocam presentes, afetos e gentilezas). Até aqui tudo bem? Na-na-ni-na-nã! Tem mais: Contas a pagar, educação e respeito, uma casa e harmonia entre seus coabitantes. Passar uma infância aprendendo valores e brincando muito. Uma adolescência sadia, sem crise existencial, sem questionamentos, sem sensacionalismo. Uma fase adulta tranquila, com um excelente canudo em mãos e emprego condinzente. Um bom (boa) companheiro (a), casar-se, constituir seu próprio lar, perpetuar a espécie e seguir os passos de nossos genitores. Perfeito? Se fosse verdade sim. Mas não é. Lares perfeitos não existem. Pessoas perfeitas também não.

Não há família sem problemas, nem lares-modelo. Não. Isso é fato. Todos temos defeitos e virtudes sim, e o maior desafio consiste em adaptar-se a essa realidade da vida. Uma espécie de Big Brother da vida real: você não escolhe seus companheiros de jornada, muito menos define um padrão de comportamento adequado aos seus familiares. Até porque você não é dono da verdade. Mas poxa... será que é tão difícil assim vivermos em paz, civilizadamente? Respeitando o espaço e os limites implícitos? Dispensa-se falar que é quase um crime de invasão de privacidade mexer em objetos alheios sem consentimento de seu proprietário, como também é obrigar os outros a fazer o que não quer. Alto lá: não estou criticando os pais que incitam os filhos a estudar, até porque existe investimento e interesse em proporcionar a eles um futuro promissor. Muitas vezes, até oportunizando aos filhos aquilo que não tiveram a chance de possuir. Refiro-me tão somente às escolhas que, muitas vezes, os pais fazem pelos filhos, numa tentativa inconsciente de se realizarem através deles. Isso é transferência de responsabilidade. Somos responsáveis por nós mesmos. Ok, enquanto crianças, não temos muito poder de decisão, mas temos a obrigação de tomarmos posse de nossas próprias vidas e nos responsabilizarmos por isso. Assumir as rédeas de nosso próprio destino e aceitarmos aquilo que for consequência de nossos atos.

É claro que sempre ficam sequelas, cicatrizes irreversíveis, traumas de infância e o inconsciente - que é fdp - e justifica muitas de nossas atitudes e comportamento. É quase como pedir que Elisabeth Fritzl esqueça, em um passe de mágica, tudo aquilo que viveu no confinamento a que foi submetida por quem deveria protegê-la. Um teatro de horrores. Fácil pensar que tudo agora ficará bem. Mentira! Ninguém consegue escapar ileso a tanto sofrimento. Escravidão sexual, abusos constantes e cárcere privado, sem ao menos poder ver a luz do sol. E o pior: os inocentes que foram gerados, frutos do incesto. Impossível não olhar para seus filhos e não lembrar dos horrores a que teve que enfrentar resignada. Humanamente impossível não olhar para seus próprios filhos e não reconhecer neles, traços de seu agressor. Está no sangue. Está no gene. Várias vidas destruídas por um único demente, que poderá ser libertado após cumprir 15 anos de reclusão. É menos tempo do que os 24 anos que Elisabeth permaneceu PRESA com seus filhos, em condições sub humanas, bem piores do que as que seu agressor enfrentará. Injusto, contraditório, indecente, imoral e todos os demais adjetivos depreciativos que houver no dicionário da língua portuguesa, independente de reforma ortográfica. O sentido permanece o mesmo.

Diante dessas adversidades, passamos a olhar para nós mesmos. A vida, o destino, a cruz ou seja lá o nome que se der às situações que somos obrigados a enfrentar, são bem diferentes daquilo que de fato gostaríamos de viver. Entretanto, se olharmos para nós mesmos e compararmos nossa "cruz" com a de outros semelhantes, quase que podemos sentir vergonha de tantas lamentações. Devemos extrair da vida e das pessoas aquilo que elas têm de melhor. Apenas repudio o tipo de pessoa que vê maldade em tudo: são seres humanos desprezíveis. Um pai que dá afeto aos filhos, não pode ser julgado como um pedófilo. O Monstro da Áustria é uma aberração que merecia punição mais severa do que a justiça entendeu que mereça. Não merece perdão divino aquele que atenta contra os designios de Deus. Não merece perdão aquele que não sabe discernir o amor do ódio.

Cada um sabe a dor e a delícia de ser como é. Cada um sabe aonde aperta seu calo. Cada um sabe de si.A diferença não consiste na forma como a vida nos trata, mas sim na maneira como nos comportamos diante dos desafios e ingratidões que ela nos apresenta. Essa é a maior lição que levaremos daqui. Nada mais, nada menos.

Patrícia Rech
Enviado por Patrícia Rech em 07/04/2009
Código do texto: T1527079
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.