"Um Marido Terrível" =Crônica do, infelizmente, cotidiano=
Falando o português claro, sem rodeio algum, a cara dela era bem feinha mesmo. Não dá pra dizer “carinha”, pois era mesmo uma carona de bom tamanho. Tinha os olhos um tanto quanto saltados, a boca entre grande e enorme e orelhas de abano. Em compensação possuía um par de pernas de dar inveja a muitas mulheres e de fazer circular mais depressa o sangue dos homens. Um par de pernas encimado por um corpo igualmente belo. Do pescoço para baixo, perfeita.
Aliada à beleza do corpo, sua outra qualidade era a generosidade. Dava pra todo e qualquer homem que lhe despertasse a atenção, principalmente para os médicos para os quais trabalhava em sua função de enfermeira.
Também era muito simpática, conversadeira, espirituosa e gozadora. Do tipo que animava qualquer festa e fazia rir quem dela se aproximasse.
O marido babava por ela. Nas poucas ocasiões em que permaneciam juntos por alguns dias ele não saía de perto dela, abraçando, beijando, fazendo declarações de amor e chamando-a pelo nome da bela da época na tevê. Só nos restava conter o riso. Riso que era difícil controlar ao pensar na “bela da época” e na feiúra daquela cara a ela comparada. Ela mesma apenas abanava a cabeça e ria com a estapafúrdia comparação.
- Vocês viram como está linda a minha Ana Paula Arósio? – ele perguntava a sério e a estreitava em mais um forte abraço no pescoço, gesto que ela demonstrava claramente detestar.
Vendedor-viajante, o marido corria o país revendendo artigos de papel e pouco parava em São Paulo. E ela pouco parava em casa. Pouco se importando com o que dizia a vizinhança, chegava alta madrugada e cada vez descia de um carro diferente. No dia seguinte comentava, rindo muito:
- Ontem eu saí com um verdadeiro capeta!! Ô homem maluco, meu Deus!! Quase que me gastou toda numa noite só! Mas essa semana será mais sossegada, se Deus quiser. O maridinho chega e só vai dar trabalho pros meus ouvidos. Ô homem que fala em sexo, meu Deus!! Também só fala...Transar que é bom sempre fica pra outra hora. Frouxinho, frouxinho...
Lembrando-nos do marido, só podíamos mesmo rir. Coitado...Durante os anos que convivemos com aquele casal eu só me lembro de ouvi-lo gabando a esposa, exaltando seus dotes, propalando sua competência como profissional da saúde, suas maravilhas como esposa, sua beleza incomparável, sua simpatia sem igual, seu senso de humor genial e muitas outras qualidades que a ela agregava sempre. Era, na opinião dele, casado com a Mulher Perfeita.
Em minha opinião, a Vagabunda Perfeita. Perfeita para uma boa farra, para uma boa noite em um motel, para uma cervejada das boas, para uma transada a qualquer hora e sem compromisso algum.
Depois de muitos anos de casados ela o convenceu de que seria melhor se separarem. Convenceu-o que ele a faria mais feliz não tendo ao seu lado um homem tão ciumento e possessivo. O cara acreditou tanto nos argumentos dela que não apenas separou-se como amigo como também fez questão de deixar para ela tudo que haviam adquirido em comum naqueles anos todos. Deixou-lhe os dois carros, a casa, o apartamento na praia, a casa em Campos de Jordão e uma pensão equivalente a quase a metade de seus ganhos.
Ex-marido generoso, procurou e acabou encontrando um apartamento para comprar bem pertinho da casa dela.
- Sabe como é, né? Ela não está acostumada a viver sozinha e pode de repente precisar de alguma coisa. Por isso quero estar sempre por perto.
Dava pena. Era mesmo de constranger quem os conhecia. Acho que nem Deus o convenceria que aquela mulher não correspondia a absolutamente nada do que ele via nela. Ele chegava a inverter as coisas: era ela no céu e Deus na Terra.
Há alguns anos não o vejo, mas me lembro sempre, com pesar, de sua última conversa comigo:
- É, Fernando...Acho que meu destino é mesmo acabar meus dias sozinho. Esse meu gênio terrível, esse meu ciúme doentio, o medo que inspiro às mulheres, são coisas difíceis de mudar. Você viu como era meu casamento, não viu? Consegui estragar tudo com esse gênio maldito. Coitada dela...Sofreu o diabo comigo...Ainda bem que agora parece mais feliz, coitada...
Nesse momento ela passou por nós em seu carro, buzinou e acenou alegremente. O sorriso do coitado foi de orelha a orelha:
- Está cada vez mais linda...Se é que isso é possível...
Saí depressa dali. Se tem coisa que me deixa engasgado é ver gente com os olhos marejados de lágrimas.