Eu Morri

 Estonteado, ainda pude ver meu corpo esticado, duro. Aquela manhã de sábado estava acinzentada, não diferente de tantas outras no inverno paulista, caia uma fina garoa que deixava a sensação térmica ainda mais gélida. Sempre preferira o calor, principalmente fêmeo, agora ali a poucos metros do chão, quisera um abraço qualquer ao sangue frio. Curiosos aproximavam-se de meu cadáver fazendo o sinal de cruz.

 Lamentações e espantos, alguns comentavam meu fim, outros praguejavam sobre quão fútil pudera ser nossa passagem na terra. Notei alguns lábios descontraídos a sorrir pela minha desgraça, cochichos discretos sobre quem ficaria com a viúva. Mulheres reclamando seus maridos. Que fariam se partissem naquelas condições? Como criar os filhos? O capítulo da novela das oito. Gente comendo e bebendo. Não me recordava o que seria anormal.

 Minha mente não conseguia formatar sucessões de acontecimentos, só sabia que estava ali e que não poderia despedir-me de meus amores. Observei aquela expressão em meu rosto, vi ternura como jamais enxerguei quando tivera vivo, até me achei mais bonito; parecia dormir um sono celestial. Da cabeça aos pés imóvel; estático. Tranqüilo, sem pressa e preocupação, caíra em sono preguiçoso.

 Lembrei-me do trabalho duro, das contas à pagar, da prestação do apartamento novo, do empréstimo que fizera ao banco. Pensei na cara do gerente quando soubesse de minha morte. Jamais emprestaria tal dinheiro. IPTU. IPVA. Água. Telefone. Condomínio. Luz. Enfim, luz no fim do túnel. E meu chefe? Com aquela cara de bonachão perguntando sobre os relatórios de fechamento e onde eu me enfiara que até àquela hora não aparecera. Amigos preocupados por não ter dado notícias, desafetos torcendo para que desaparecesse.

 Vi meus filhos consolados por suas mães, senti pena de mim mediante a aflição e sofrimento daquela hora. Mamãe balbuciando palavras sem nexo e a todo instante esmurrava o peito em sinal de sofrimento. Tentavam abraçar meu corpo, ouvia seus choros de amargura e angústia; suplicavam a minha presença; pensei tornar ao corpo, não era possível, não me pertencia.

 Senti um perfume de rosas. Suave. Ao fundo uma pequena orquestra a tocar um fúnebre hino que não conhecera. A música dizia que era chegado à hora e precisava partir.

 Olhei pela última vez em volta de meu caixão, havia muitas flores, cores, aromas e arranjos. Uma faixa com mensagens de despedida, um pequeno púlpito com livro de assinatura dos presentes e um de meus textos.
Tentei aproximar-me para ver qual era o título, mas não conseguia ler, minha visão estava turva e as letras miúdas como todos os textos que escrevera. Deixara a caneta cair de meus dedos. Eu morri.
Sidrônio Moraes
Enviado por Sidrônio Moraes em 05/04/2009
Reeditado em 17/05/2015
Código do texto: T1524195
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