UMA FICHA CAIU...DO CÉU!

Meu Tio Fiore não era um homem comum, e isso com tenra idade eu já diagnosticava.

Vindo da Itália como bebê de colo, quase recém nascido, muito jovem se casou com a senhorita Rosa, sua vizinha do bairro da Moóca.

Não era um homem de muito estudo, porém era um homem letrado...e deveras inteligente.

Vendia livros, mas os lia a todos que comercializava, porque ensinava que devemos conhecer o produto que indicamos. E me contava muitas estórias...

Imagina se meu tio Fiore estivesse vivo, nos dias de hoje!

É por isso que não tenho mais dúvidas: A vida deveras tem um ciclo planejado para todos nós.

Nenhum ser vivo desta terra aguentaria tantas mudanças a toque de caixa...

E eu ainda era muito criança quando ele já era bem mais velho, embora um dos filhos mais novos dos oito que minha avó pariu.

E quando a gente é criança, todos nos parecem bem mais "velhos " do que realmente são.

Tio Fiore fazia muitas piadas com a morte, e disso eu nunca me esqueci, porque o achava duma coragem...fazia tantas anedotas que me convencia de que a morte havia dele se esquecido, pois embora Já fosse bem longevo, só às vezes ficava doente, a correr um risco mais iminente de falecer.

Ao visitá-lo, eu sempre muito preocupada, ele me advertia:

-Xi bela, acho que acharam a ficha perdida do titio, LÁ EM CIMA! Eu pensei que a tivessem perdido...para sempre.

Demorei para entender o quê ele queria me dizer com " a ficha lá de cima".

-Sabe bela,-dizia ele- todos temos um fichário lá no céu.

Ele rola com o tempo pelas mãos dos anjos, os secretários de Deus...e quando chega a nossa hora de mudar daqui, um deles nos chama para morar lá em cima.

Bem, embora a explicação fosse lúdica, hoje não tenho mais dúvidas de que devemos tomar muito cuidado com o que falamos PARA CERTAS CRIANÇAS.

E eu quando ia visitá-lo, naquelas gripes nossas de cada dia, logo lhe perguntava:

-Tio, será que acharam a sua ficha?

Ele sorrindo me afagava a cabeça e me dizia..."não bela , ainda não foi dessa vez".

E noutra oportunidade, com o quarto cheio de visitas...quando já tinham até chamado um padre, eu sentenciei em alto tom:

-Padre, acho que dessa vez acharam a ficha do tio, não acharam?

Lembro-me que levei um beliscão do meu pai...

O padre continuou a rezar.

E meu querido tio, apesar da EXTREMA UNÇÃO ,ainda seguiu pela vida um tempão, vendendo seus livros com a sua ficha perdida lá em cima. E zombava dos anjos, aqueles secretários "relapsos", como ele os descrevia.

Eu me tornei mulher adulta e ele contabilizou quase cem anos.

Fui visitá-lo certa vez, ainda com as "fichas do céu" na cabeça, quando ele já não reconhecendo mais ninguém, de súbito bem baixinho me falou:

-Bela, dessa vez encontraram a ficha perdida. Estou de mudança.

Fiquei boquiaberta...

E ele logo se foi, com noventa e seis primaveras de estórias bem contadas, depois que um "eficiente" secretário de Deus, encontrou sua ficha perdida...

Nesta noite, sonhei com ele, e pude perceber que continua a vender seus livros, e a policiar os anjos, entre as ofuscantes luzes do céu.

Disse-me que agora o "tal fichário" está organizado.

Ninguém nunca mais será esquecido.