Relator

Sentou em frente ao computador e começou a relatar, mas antes, pouco tempo antes, estava em casa, banhado de monotonia, querendo algo pra fazer num dia chuvoso, daqueles em que a chuva não molha, mas também não deixa ninguém seco e confortável. Era esta a situação, quando percebeu que a chuva parara, saiu! Oportunidade perfeita, encontrar alguém ou se encontrar n’algum lugar, sempre andava a procura de si ou alguma coisa que não sabia o quê, mas procurava, cavava. Como numa cidade pequena, não podia deixar de encontrar velhos amigos e bater um papo, procurou mais alguém, sem saber quem, procurou algo inusitado, seja lá o que for, mas nada. Passos mil e nada! Pensava não na vida em geral, mas pensava na vida contemporânea enquanto andava só, desejara um mp3 pra acabar com aquela maré de memórias e planos e questões e conflitos e dúvidas e certezas e e e e...

Meia volta e encontra-se novamente com o amigo, dentre vários assuntos, todos em volta dos velhos tempos, não podia faltar aqueles de banda e não podia deixar de relacionar o passado com o presente e tentar rimar com o futuro. Amigo pra casa, ele pro bar mais perto. Barzinho psicodélico dito underground, quadros do Raul, Janis Joplin, Che Guevara, pinturas e fotos interessantes. O ambiente passava uma mensagem daqueles bares onde em livros, o coadjuvante para pra pensar, ou em filmes italianos onde a reflexão é enquadrada na fumaça de cigarro e um copo de uma dose qualquer, rosto em segundo plano. Bar cheio, poucas pessoas, bar pequeno. Uma mesa vazia, vários casais, grupos de jovens novos e velhos jovens, sorridentes, tranqüilos, comemoravam a noite que só chega depois do trabalho, assim como o sol só nasce aos sábados e domingos. Rostos conhecidos fitavam, troca de olhares e alguns comprimentos..

_ Ô Taz, fala aí véi!

_ Opa, beleeeeza?!

_ Me põe nesta mesa a cerveja mais barata, certo?

Um copo, uma garrafa, uma mesa, uma pessoa. Muitos uns e nenhum dois ou três, nenhuma pluralidade. Sentia-se incomodado, todos acompanhados, talvez solitários, mas com pessoas ao lado. Mania de perseguição ou experiência, pensava que alguns pensavam sobre ele, falariam sobre sua solidão, seu cabelo, seus gestos, sua vida. Mas que se foda! Percebeu o DVD que tocava na TV do bar, MPB romântico. Beijou o copo mais uma vez, mais fundo, mais suculento. Olhos perdidos, aleatoriamente procurando um ponto fixo, pra sair da neurose de perseguição, mas nada, nadava em desconforto e tentava concentrar-se nos clipes musicais. Tirou o copo da mesa pra mais um beijo... _ Um olho na mesa!- pensou, rapidamente desenhou outro ao lado aproveitando a umidade do copo. Cílios, nariz, boca. A brincadeira começou. Cabelo, contorno do rosto, barbicha... O rosto tomando forma e em tamanho real: descabelado, um olho aberto outro fechado, um pouco deformado, nem feliz nem triste, parecia o espelho da alma. Era alguém que podia se encarar, não se sentia nem sozinho mais, ria do casal calado, provavelmente abraçados e solitários, muito mais sozinhos que ele, aliás: _ Quem aqui estava solitário? - Perguntava-se rindo. Aproveitava-se da desgraça alheia pra se sentir melhor, como aquelas pessoas depressivas que, para se animar, vêem vídeos de deformados vencedores na vida, procurando a felicidade na superação dos outros, esquecendo da própria, afogando em mais uma falsa e maléfica felicidade.

Mesa de madeira, música de amor, concreto e abstrato misturavam entre o que seus olhos e ouvidos bebiam e o que sua boca beijava e saliva que engolia. Mantinha o reflexo com a umidade do copo, risco aqui e rabisco ali, logicamente o rosto mudava de feições, de direção do olhar, de boca, de cabelo, até o queixo vezes quadrado e rígido, vezes redondo. Deu risos tranqüilos observando a metamorfose e mais um gole quando cai, do copo, uma gota. O vulto do pingo é visto _ Onde caiu a gota? - Caiu num dos olhos da alma, exatamente, como uma lágrima. Procurou pensar que estava enganado, impossível, era muita coincidência, muita.. .muito massa! Olhou um pouco para os lados, procurou alguma coisa que o autor tenha escrito errado, alguma falha de descrição, alguém tinha que estar escrevendo isto, essa vida é um livro, tem que ser. Mas não achara nada! Voltou aos olhos da alma e continuou ainda por algum tempo a encarar enquanto desenhava o contorno do rosto e brincava com o cabelo de água.

_Mas que isso!

- Parecia mentira, provavelmente um risco traçou lágrimas no outro olho, agora escorridas em caminho da boca. Cadê o sorriso? Medo, era essa a nova sensação, medo. O mundo não é real, há algo mais aí! Enquanto fitava o desenho, encarava sua alma, no entanto um pano veloz passou desmanchando a suposta mancha na mesa, era o atencioso dono do bar.

_ Quanto ficou a cerveja?

_ Uai, já vai?

_ Depois dessa...

_ Quê?

_ Deixa...

Passou pela porta sem saber o que pensar do casal.

Chorava sem lágrimas e ria sem dentes?

Chorava sem lágrima ou ria sem dentes?

Chorava sem lágrimas e ou ria sem dentes!

Jamais teria a resposta, tudo tão abstrato, tão reflexivo. Na volta as mãos corriam os muros paredes e grades das casas já apagadas por que passava, talvez pela vontade de ter algo concreto em suas palmas, a leve embriagues dava mais ao momento, uma rua deserta, uma mente povoada, segundos em branco, segundos multicoloridos, até raios de sol capturou à noite, ainda que pouco, conseguiu ver-se iluminado pela lua, nada melhor que um poste apagado para tal. Mistura de senseções...

Durante momentos desse momento, pensou em descrever o momento, entrou em casa, tirou o tênis a camisa, bem mais relaxado. Podia alguma droga ter para fugir de alguma coisa ou simplesmente chegar a outro lugar, pensou, mas antes de pensar, sentou na frente do computador e começou a relatar.

Enzo Pinho
Enviado por Enzo Pinho em 28/03/2009
Reeditado em 21/04/2009
Código do texto: T1509987