O tombo

De hoje não dá pra passar. Geralmente vou ruminando uma idéia ou outra, que por sorte ou azar (de quem lê) irá para o papel ou ficará em período de hibernação eterna. Contudo, o tombo do quase fim de noite já criou ramificações poderosas em meu cérebro, seu destino é certo e irrevogável. Ei-lo aqui.

Havia um pressentimento, ele já estava a espreitar-me durante todo o dia. Talvez desde o momento em que escolhi o vestido branco: presente de minha querida segunda sogra para eu passar o primeiro e único réveillon em São Paulo, era 2001 ou 2002? Ele ainda sobrevive, mesmo depois de vestir uma espécie de manequim em um recital de poesia... e olha que a poesia era de fato para a dona do cujo. Na ocasião o zíper estragou e foi trocado. O tal vestido se encontra até bem conservado, pode ser pelo pouco uso, porém não esconde se se olhar bem, um leve amarelado no forro.

Feita a escolha do vestido, a sandália com correias brancas e salto Anabela de cortiça. Deve ter uns bons centímetros pois desfrutei de um ângulo superior a normalidade dos meus 1,54m.

Andar com estes saltos altos e grossos exigem uma certa busca constante de equilíbrio e demonstração de falsa leveza. Pois bem, creio que estes foram os primeiros sinais.

No trabalho, o dia foi de campanha de doação de sangue. Não raras vezes se ouvia falar de doadores que ficaram meio tontos ou ainda chegaram a desmaiar mesmo. Mais um sinal: a gravidade da Terra se impondo.

Fim do dia, o tombo quase profetizado. Um dos colegas que doaram vida e amor através dos componentes sanguíneos, questiona se haveriam pré-indisposições para uma atividade física. Alguém recomenda não fazer nada muito pesado e o próprio questionador lembra que a corrida seria uma opção a ser evitada e ainda se recorda de um episódio em que sofreu uma vergonhosa queda. A premonição está quase completa.

Aula, aula, pêra e pêssego no recreio com os coleguinhas. Aula, nato, naturalizado, elegível, circunscrito. Fatídico caminho rumo ao estacionamento. Um frio na espinha ao reparar nos carros tirando fino um do outro pela rua estreita. Imagem da camioneta do meu padrasto raspando a lateral em um trator ou similar e a ira do instante. Risos. De repente total escuridão, eu me sentindo como se fosse dar uma de ponta no chão. Era como se eu viesse de uma corrida e me impulsionasse para o chão. Espanto. Machucou? Não. Acho que não. Vontade louca de rir. Excomunguei a sandália em pensamento, ora vinha a vontade de rir ou chorar, sei lá, me senti meio louca.

As mãos sujas. Os dois joelhos começaram a arder. Então constatei que é possível machucar os dois joelhos ao mesmo tempo, sem ser num tapete áspero da sala em cavalgadas amorosas e um tanto quanto desastrosas para as frágeis rótulas da perna.

Por fim o tombo triunfara, posso até imaginar sua pirueta comemorativa. Mas se antes eu excomungara a sandália, não fazia o mesmo com o tombo. Na verdade ele me trouxera regozijo: a adrenalina de um mergulho no chão, segundos inesperados e incalculáveis de acontecimentos milimétricos, sensações não comuns ao corpo, curiosidade de chegar em casa e olhar os supostos ferimentos. Ardência, quanto tempo eu não sentia! Adorei!

Lígia Martins

26/03/2009.

Lígia Martins
Enviado por Lígia Martins em 27/03/2009
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