O Barbeiro

Conheci o barbeiro no inverno de mil novecentos e setenta e seis, poderia aqui inventar o mês e o dia da semana, afinal a literatura sempre perdoa as mentiras do autor, e até por vezes brinda esses deslizes da verdade com adjetivos como “criatividade”, “talento”, etcétera e tal . O certo é que não lembro , mas recordo que era cedo da manhã, perto das sete horas, que era o horário de entrada no “Liceu” do Uruguai.

Era época da Ditadura Militar que na “banda oriental” foi bem mais dura do que imaginam alguns historiadores oficiais. Era um tempo em que nas repartições públicas, desde as mais singelas e que cuidavam de setores sem nenhuma expressão até as mais importantes, os cargos de direção eram destinados a Oficiais Militares “reformados” , ou seja, militares aposentados que prestavam serviços ao estado militarizado.

O nosso Liceu, o mais importante da cidade, por isso designado pelo número um, foi entregue às mãos de ferro de um Major da Força Aérea que simplesmente transformou – ou pretendeu transformar – todo o corpo discente em “tropa” e ,como tal, submeter aquela enorme massa de adolescentes a um regime de comportamento militar .

Muitos obedeceram cegamente – por medo – essa é a mais pura verdade , enquanto outros resignavam-se por conveniências ; mas muitos outros resistiram , em intensidade e envolvimentos diferentes. Mas demonstrando inconformidade com o modelo imposto aos estudantes secundaristas da década de setenta, deixaram para a história algumas páginas e tanto ...

Aqui nesta crônica contaremos o episódio do “Barbeiro” e que começou quando um grupo , no qual estava inserido este escriba, foi barrado na porta do “Liceu” , impedidos de entrar , porque o “crime” era não haver cortado o cabelo de modo a que não tocasse a gola da camisa , isto é , no corte militar, onde o pescoço teria de ficar integralmente exposto, sem que nenhum fio de cabelo tocasse a gola da camisa. Incrível , mas verdadeiro ...

Reunidos no lado de fora, estabeleceu-se o debate sobre o que fazer e, obviamente, as opções eram reduzidas a UMA - o corte de cabelo, pois não haveria outra maneira de entrar no Liceu , mas justamente aí surgiu a idéia mágica : “vamos todos raspar a cabeça” ...

Aclamada a solução , faltava encontrar um barbeiro, e eis que senão como, do nada surgiu uma voz – “Tem um bem pobretão e que fica a poucas quadras daqui” ... E lá se foi a turma inteira de futuros carecas . Aos poucos o feliz barbeiro ia largando um a um de cabeça raspada; alguns , contudo, insatisfeitos com a máquina “zero” mandaram ainda “passar a navalha” dando um efeito de ovo e brilho de pinico branco ao “côco” da cabeça.

No outro dia, previamente combinados, entramos juntos e desfilamos em bloco pelos amplos corredores, despertando a atenção de todos e uma nervosa agitação nos mais receosos , muitos dos quais chegaram a se afastar para “não se comprometer” . A evolução pelo interior do educandário logo cessou, com a convocação do Diretor.

O Major , sem muitas palavras e enfurecido apenas entregou os papéis comunicando a suspensão , por um período de tempo que permitiu crescer o cabelo a níveis menos, digamos, “protestantes” . O fato curioso é que esse barbeiro tornou-se um amigo comum daqueles meninos para a vida inteira. Quando viajo em férias ou a passeio para o Uruguai - o que faço todos os anos - ainda cumpro com o ritual de ir lá cortar o cabelo e colher informações sobre o paradeiro dos parceiros daqueles “verdes” anos .