Balas para os Meninos

Quantas vezes você já se deparou com um AR-15? Uma, duas, nenhuma? Se você é um engenheiro da Prefeitura do Rio, pode ter visto uma pistola dourada na cintura de um belo negro robusto e reluzente ou prateada na mão de um menino sarará ou um ou dois fuzis quando teve que vistoriar um logradouro nas inúmeras favelas de nossa cidade. Mas se você trabalha num escritório de contabilidade ou numa empresa de informática ou numa agência bancária, pode ser que tenha visto um AR-15 numa das falsas blitzens que acontecem comumente em nossas vias entre as 19h30 e 23h30. Normalmente próximas a uma casa de shows na Avenida Brasil, na Zona Oeste ou na Zona Sul ou em qualquer ponto da nossa Cidade Maravilhosa. Ou então pode ter visto o cano de um fuzil, apontando para o alto, saindo pela janela de um carro da PM, numa ostensiva exibição, que se presume involuntária, por parte de nossos policiais militares pelas ruas do Rio. Mas nunca será um encontro que ocorra com freqüência, isto é, você com o AR-15.

“Lá perto de onde mora minha tia, no subúrbio da Zona Norte, os caras sobem e descem o morro de moto com um AR-15 nas costas. Sem serem absolutamente admoestados”, dizia um amigo meu, o Galisteu, que já faleceu. Nesse caso, quem mora por ali, onde o Galisteu morou, consegue ver com maior freqüência esse tipo de armamento.

Enquanto esses jovens não são admoestados, se um de nós for pego, numa blitz regular, com qualquer tipo de arma de fogo, ficaremos devendo pormenorizadas explicações aos policiais, correndo o risco de sermos presos. O que tem uma configuração irônica, na medida em que somos cidadãos que não vivemos à margem da lei, como aqueles motoqueiros.

Do mesmo modo, enquanto não vemos habitualmente um AR-15, a criança que cresce no morro, ou nas favelas horizontais, como o Complexo da Maré, passa a sua infância na companhia desse tipo de arma e de muitas outras. Assim como estão sujeitas a todo tipo de arbitrariedades, cometidas por maus policiais e algumas vezes até pelos donos do morro ou da favela, nós não.

A nossa dignidade decorre dos impostos que pagamos, da faculdade ou curso médio que cursamos, do emprego que conseguimos, do bairro em que moramos - embora possamos observar o declínio da qualidade de vida em quase todos -, das roupas que usamos, dos restaurantes em que comemos, etc.

Enquanto isso a dignidade do garoto da favela, que não chega a concluir o curso elementar, cujo pai (quando esse pai existe) não paga impostos e nem as contas de luz e água, cujo único emprego possível é o oferecido pelo traficante, a dignidade de uma pessoa com esse tipo de formação é obtida a partir do momento em que consegue empunhar uma arma. Sendo um AR-15, melhor. Maior será sua dignidade.

Porque aí então ela será olhada nos olhos, será respeitada, e não ignorada como os que dormem sob as marquises ou como os que colocam as balas nos espelhos laterais dos carros e depois correm para o início da fila para recolher o dinheiro que nunca vem. Ignorada como nós não somos, por estarmos incluídos no rol das pessoas consideradas de bem. Ou de bens. Porque não vivemos à margem da lei. Ou não somos assim considerados, embora em muitos casos nossas práticas sejam até mais nocivas do que as que são atribuídas aos que temos em conta como marginais.

Basicamente a batalha das ruas, como a ocorrida recentemente na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, é a batalha entre os que têm e os que não têm. Ou é pelo menos uma decorrência disso. É muito pouco provável que entre os que entendemos como traficantes ou criminosos encontremos aqueles que, quando crianças, tiveram a dignidade de um lar como o que tivemos. Por mais pobres que tenhamos sido. Sem, é claro, termos vivido abaixo da linha de pobreza como certamente a maioria deles viveu. Para nove entre dez meninos que não sabem de seus pais, que passam os dias cheirando cola, ou vivem fazendo malabarismos pelos semáforos da cidade, a dignidade e o respeito que poderão esperar das outras pessoas será obtida apenas no momento em que eles puderem nos afrontar com o uso de uma arma.

Essa é, em princípio, a única forma que conseguem para obter a nossa atenção.

Antes os políticos subiam o morro para inaugurar uma bica d’água em época de eleição. Hoje eles sobem o morro para apoiar o candidato à presidência da associação de moradores local, que deverá interferir junto à comunidade para que ele obtenha os votos necessários à sua eleição. Depois, como antes, eles simplesmente desaparecem.

Essa é, basicamente, a forma de atenção que conseguem ter os que costumamos chamar de excluídos.

Podemos não aceitar, mas não podemos deixar de entender a forma com que eles procuram provocar a própria inclusão, o que a cada dia se torna menos efêmero. Não no sentido individual (morrem cedo), mas no coletivo (ressuscitam, sempre em número maior).

Rio, 25/03/2009

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 26/03/2009
Reeditado em 17/04/2009
Código do texto: T1506283
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