O INFERNO NOSSO DE CADA DIA NOS DAI HOJE...

A última oração testemunhada de Jesus “o homem” antes de vestir a sua natureza Crística foi da mais profunda e inimaginável dor. Conta-nos os evangelistas que “ele” (até então com “e” minúsculo) começou a ter pavor e angustiar-se. Retirando-se para o Jardim Getsêmani, localizado na ladeira ocidental do Monte das Oliveiras e que havia sido palco de tantas orações, prostou com face por terra orando fervorosamente - era a decadência da carne, como disse mais tarde aos apóstolos: “o espírito está pronto, mas a carne é fraca”. Sua alma estava tão envolvida por uma tristeza mortal que chegou a suplicar: “Aba! (Pai!), tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Contudo, não se faça o que eu quero, senão o que tu queres”.

Quase ou nenhum de nós consegue entender porque o Pai não poupou o filho amado de mais um “inferno” mesmo depois de evidentes súplicas - afinal o “Jesus homem” já tinha se mostrado o filho mais fiel e valoroso soldado a anunciar uma nova chance para a humanidade - a chance de transformar água suja no mais saboroso vinho. O Filho amado, antes cheio de poder a curar cegos, leprosos e a ressuscitar os mortos, estava àquela hora talvez abatido - não só ele, mas seus seguidores que acreditavam na proclamação de um novo reino, muito embora ele já os tivesse advertido: “o meu reino não é desse mundo”. Ao contrário de Jesus, esperamos ser socorridos de tantas tentações, sem que tenhamos pelo mérito da luta e fé adquirido o direito de provar de tão degustante manjar. Foi por misericórdia que o Pai não poupou o Filho daquele inferno - era a dor necessária para que Jesus, o homem, fosse elevado à sua natureza Crística, assim o Pai, o Filho e seu Espírito seriam “um” - “um”, unidade de amor que se derrama no sangue de todos os calvários daqueles cuja distinção se faz por causas altruístas. O Jesus humano se viu acompanhado de suas súplicas até a cruz bradando em alta voz: “Elói, Elói, lammá sabactáni?, que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Porém, vencido o seu inferno viu o seu céu se abrir e já nos braços do querido Pai pôde dizer: “Nas tuas mãos entrego o meu espírito”.

O inferno sempre foi a porta de entrada de todos os céus. Tanto é assim que os gregos acreditavam que o céu era um inferno de três andares - Érebo, Hades e Tártaro. Passar pela porta era uma prova tão valiosa que diziam ser esta guardada por Cérbero, o terrível cão de três cabeças, cauda de serpente e incontáveis cabeças de cobras no dorso. O músico Orfeu, aquele que até os rios paravam de correr para ouvir a  sua lira,  foi um dos poucos heróis a conseguir tal façanha. Chegou a convencer o casal Hadese Perséfone, que o autorizou a resgatar sua amada Eurídice das profundezas do inferno, mas com uma condição: ela o seguiria, desde que ele não se virasse para olhá-la. Porém Orfeu não resistiu a mais uma tentação e virou o pescoço para ver se Eurídice estava junto. Foi o bastante para perder a amada para sempre. Muitas vezes temos a oportunidade de Orfeu - a oportunidade de atravessarmos o inferno e quando já estamos quase no paraíso, eis que olhamos para trás e colocamos tudo a perder. Felizmente, ao contrário de Orfeu, temos esta chance todos os dias. Evidente que por não sermos exímios músicos a tocar valsas de perdões e sonatas caridosas, mas críticos ferrenhos de nossa dor, somos quase que vorazmente devorados pelos nossos demônios de mil cabeças, cujas feridas estão sempre abertas.

O poeta italiano Dante Alighieri, autor de “A Divina Comédia” (poema alegórico, filosófico e moral), que abalou a pensamento teológico da idade média, auxiliado pelo espírito de Virgílio - poeta que ele tanto admirava - divide sua procura por respostas existenciais em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Uma espécie de começo, meio e fim. A primeira pergunta que deve ter ocorrido a Dante naquele início de jornada quem sabe não fora: “Onde fica a porta do inferno?”. Logo à frente sua caminhada acabaria por responder - ele descobre que Lúcifer, o chefão, habita o centro da terra (o centro da natureza material; não seria este “o centro” de cada ser humano?). Para Dante, o paraíso se divide em duas partes - material e espiritual, tal é a importância e consciência de que foi pelas portas do inferno que o seu paraíso foi possível. Este foi o pensamento que influenciou artistas como Sandro Boticelli, Salvador Dali, Michelangelo, cujas obras são marcadas pela poética dualista de se construir um mundo novo, cheio de celebrações - do romantismo ao realismo, da alegria à tristeza, do amor ao ódio. Dia a dia temos que ter consciência desta jóia divina posta ao nosso favor e que nos divide ao meio (mas sem separar-nos de nós mesmos), matéria e espírito (inferno, depois o céu) - o livre arbítrio para atravessar ou não as portas de todos os infernos - é assim que “muitos são os chamados e poucos os escolhidos (auto-escolhidos)”.

Hoje, vencida a experiência da cruz e iluminando-nos com sua sabedoria Crística, o Rabi de Nazaré possivelmente ensinaria: “… o inferno nosso de cada dia nos dai hoje…”. Literalmente Inferno (Lat. Infernu) significa túmulo (a morte que enterra o homem velho e o ressuscita ao dar-lhe o pão em brasa da palavra sábia: “Eu sou o pão da vida, aquele que vem a mim não terá fome”) e eis aqui mais uma descoberta Crística: “Quem não nascer de novo não poderá ver o reino de Deus…” Quem não atravessar o seu inferno, carregando com vigor a sua cruz, não chegará ao seu céu.


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