Nosso Marciano Favorito
A televisão ainda não havia recebido as cores e no extremo sul do Brasil, na fronteira com o Uruguai, eram poucas as casas que possuíam esses aparelhos, todos de madeira lustrada, enormes caixas, com uma série de botões inúteis, porque na verdade mal e porcamente se assistia a um único canal de televisão, isso se o tempo ajudasse, já que bastava uma nuvem escura ou uma ventania para acabar a programação.
Uma das séries de TV de maior sucesso no início da década de setenta era “Meu Marciano Favorito”, cujo personagem um alienígena vindo de marte levantava duas anteninhas da cabeça, um recurso estupendo de “efeitos especiais”, que hoje só pode ser lembrado no viés do cômico ...
Como sempre em histórias da tenra idade, um dos nossos parceiros ganhou logo o apelido de Marciano, pois sua cabeça em forma arredondada se assemelhava em muito com a do personagem da série de TV. Ele era um sujeito muito especial, que aceitava sempre com astral alto as brincadeiras e foi assim que não apenas aceitou o apelido, como festejou a iniciativa. Gostou e o adotou , passando logo a responder a todos como - MARCIANO.
Meninos pobres, fomos todos crescendo e apenas um do grupo pertencia a uma classe social mais elevada – conhecido como “Nando” era filho de próspero empresário e graças a ele nossa turma tinha acesso a muitas das boas novidades da época. Por exemplo, quando a Philips lançou um moderno aparelho que acumulava até cinco LPs (discos de vinil) ele nos levou até sua casa para conhecer a “máquina” e –de quebra – ouvir em primeiríssima mão o último lançamento de Raul Seixas ...
Quando a Yamaha lançou sua primeira moto de cinqüenta cilindradas, motor dois tempos, barulhenta e que deixava um rastro de fumaça branca, Nando foi o único da turma a aparecer com a moto, mas seguindo sua biografia e uma índole generosa, ensinou todos os parceiros a pilotar e ficava feliz vendo os outros passeando na volta do quarteirão. Depois , satisfeito embarcava e ia embora.
Éramos todos muito jovens e estávamos de bem com a vida, intensamente felizes , não conhecíamos a inveja e fomos escalando os degraus do tempo sem sentimentos de ciumeira ou rancor social , o que facilitou para que aos poucos , com trabalho e ajuda dos pais todos comprássemos também nossas “motocas.”
Numa tarde, após um bate-papo, Marciano saiu para buscar alguns pertences em sua casa e ficamos todos à sua espera. Ele acelerou sua moto, mas num cruzamento uma mulher esposa de um militar de alta patente cruzou a preferencial por onde vinha embalado o Marciano em sua moto verde. Naquela época não era obrigatório o uso de capacete e mesmo voluntariamente, ninguém o usava. Também muito provavelmente o capacete não iria mudar a história do Marciano que naquela tarde saiu de nossas vidas e certamente embarcou para algum Planeta para onde foi levar sua felicidade contagiante.
Nós ficamos , mas nunca mais a turma voltou a ser o que era, pois aos poucos o amargor da vida adulta foi se somando àquele gosto horrível da primeira grande experiência de perda – a viagem sem volta do “nosso Marciano favorito” ...