RÉQUIEM PARA O PRESIDENTE, de autoria de Ana Medina

As chamadas mal haviam sido feitas, já os bedéis passavam atabalhoados,adentrando as salas de aula, susurrando aos ouvidos dos mestres algo estarrecedor.

Toda a Escola era silêncio, mas na rua o carro de propaganda tocava o Réquiem de Mozart.

Na primeira sala o vozeirão do professor de ciências anunciava os pontos da argüição: - osso da face, doenças decorrentes da falta de vitaminas e partenogênese. Súbito seu rosto se fez grave e anunciou: - argüição suspensa, arrumemsuas pastas, perfilem-se no pátio que o Diretor tem algo muito importante a lhes comunicar.

Um suspiro de alívio não tão grande quanto à curiosidade, encheu aquela sala. Ninguém ousou indagar ao austero médico o que se passava.

O professor de História, um jovem retilíneo, severo, passou como um projétil por entre as estudantes, abracando um maço de jornais e livros.

A sineta tocou nervosa para apressar o professor de Matemática, que ainda se detinha explicando complicadas equações. As filas se formaram rapidas na escadaria, em frente ao pátio, Os circunspectos professores e o Diretor se perfilaram também para o grande comunicado.

O Diretor era um homem baixote, bem trajado e nervoso. Arrumando a gravata, tentou recobar a calma, conter a emoção . Balançando-se, levantou os calcanhares e disse: Preclaros mestres, normalistas, funcionários desta Casa, uma tragédia se abateu sobre a nossa Pátria amada, idolatrada. O luto veste enorme Gigante adormecido.

A curiosidade e o medo já tomavam conta daquela platéia silenciosa.

- Eles conseguiram, os trustes americanos, continuou a sua fala, puxando um lenço de cambraia, perfumado com Água Brava.

A emoção que sentimos não é fruto de sensacionalismo, é genuína, fraterna, saída do fundo do coração.

As estudantes já não se agüentavam de curiosidade. Algumas jovens mais sensíveis choravam por antecipação. Uma voz vinda do fundo do pátio rasgou o silêncio e perguntou aflita: Senhor Diretor, pelo amor de Deus, o que houve de tão grave?

O Diretor não perdeu a elegância; afinal era talhado para o cargo. Havia sido padre e agora era advogado e professor, portanto estava acostumado com as reações dessa natureza. Respirou fundo e disse num misto de pudor e eruditismo próprios dos oradores do passado:

Praesidem seipsum occidit.

A moçada continuou sem entender. Um dos mestres tratou de traduzir a frase latina:

O presidente suicidou-se.

O Diretor retomou a fala e afirmou ser Getúlio Vargasum herói porque teve coragem de enfrentar a escuridão da morte, para não entregar o país. E lamentou pesaroso: Talvez ele não tenha direito en à missa do sétimo dia.

Aos suicidas não era permitida a celebração de missa em sufrágio da alma.

No fundo do pátio, uma servente desmaiou, interrompendo o comunicado. Uma aluna mais afoita arriscou uma pergunta que ficou sem resposta. – Vai ser feriado? Quantos dias?

O Diretor encerrou a sua fala e convidou a todos para entoarem o Hino Nacional, recomendando às normalistas que fossem direto para as suas casas, lembrando-as de que estavam fardadas.

Saindo dali, as colegiais se encontram com os estudantes do Ateneu, do Jackson Figueredo, do Tobias Barreto e com as meninas do Nossa Senhora de Lourdes.

Na Praça Fausto Cardoso houve até comício. Um homem foi linchado. O Exército já estava nas ruas. Os bondes passavam apinhados. Os trabalhistas vociferavam contra a UDN.

Em Aracaju, nessa época, vagavam pelas ruas uns tipos muito excêntricos. Um deles era um mulato louco, que se dizia rico e poderoso, se autodenominava “Doutor Leandro”. Em cada palavra que emitia, acrescentava o vocábulo “Santo”. Andava descalço e vestia paletó.

“Tô-Te-Ajeitando” era outro tipo esquisito, vivia a vender bilhetes de loteria num tabuleiro preso ao pescoço, fazendo-nos lembrar aqueles personagens descritos por Victor Hugo.

“Santos Anjos”era uma maluca que perambulava, pedindo esmolas, cantando marchinhas de carnaval e hinos de igreja.

Nesse dia fatídico, 24 de agosto de 1954, aconteceu também uma reunião diferente na escadaria do Aquário, onde hoje é a galeria Álvaro Santos. – “Doutor Leandro” falava para uma platéia formada por mendigos e curiosos anunciando a trágica notícia que abalara o Brasil: O santo Presidente saiu do santo Catete e foi morar na santa Eternidade.

“Santos Anjos” cantarolava desafinada uma velha marchinha de carnaval feita quando da volta de Getúlio ao Poder:

Bota o retrato do Velho outra vez

Bota, no mesmo lugar,

O Sorriso do Velhinho

Faz a gente trabalhar...

Tô-Te-Ajeitando” apregoava: Comprem o bilhete da sorte. E justificava num tom mais baixo: O Homem coitado já morreu, não tem mais jeito. O negócio agora é arriscar o bilhete da sorte com o final 04.