Cachorro-quente do Valdir
Um sabor que marcou a minha infância, sem dúvida, foi o do cachorro-quente do Valdir.
Na década de oitenta, eu estudava numa escola municipal em São Paulo onde não havia nenhuma espécie de cantina, mas sua ausência não era sentida, porque numa casa próxima ao colégio, Valdir, o dogueiro, montou um carrinho de lanches e vendia os disputados cachorros-quentes para a meninada.
Em casa, eu mentia para minha mãe que já havia almoçado (ela ficava ocupada com o trabalho em nossa mercearia e eu conseguia, vez ou outra, driblar a vigilância materna) e seguia rumo a compra do tal cachorro-quente, me acotovelando com os outros fregueses-mirins esfomeados.
Custavam duzentos cruzeiros. Aquela nota verdinha que a Princesa Isabel estampava.
Valdir usava uma capa e uma touca branca.Os pães franceses vinham da padaria "Recanto da Anhanguera" cujos donos ainda são o Seu Jaime e Seu Virgílio.Tenho muitas histórias pra contar sobre a padaria, mas isso é assunto para outra crônica.
O lanche, embalado num saquinho de papel, era bem recheado: purê-de-batatas, salsicha de boa qualidade, molho vinagrete, catchup, mostarda e maionese.Eu não sou fã de maionese até hoje, mas a combinação de sabores no cachorro-quente do Valdir dava um gosto especial a ela.
Não havia batata-palha, carne desfiada, milho, catupiry, estes ingredientes que recheiam os hot dogs contemporâneos.Mas,certamente, embora mais simples, o cachorro-quente do Valdir superava os atuais.Talvez a saudade da época agregue sabor ao lanche e me leve classificá-lo como o melhor dog que já comi até hoje.
Algumas crianças tinham conta com ele.Num caderninho, ele anotava o nome do devedor.Se a conta estivesse alta demais, ele ralhava, cheio de marra:
-Não vem não, seu Pork's, sai daqui... Paga a conta primeiro, depois eu te dou outro.”
Pork’s era a referência do filme anti-cult sucesso de bilheteria na década de oitenta.A história era sobre um grupo de jovens a procura da primeira transa. Só vi flashes do dele na época, porque havia cenas de nudez e meu irmão me impediu de assisti-lo.Acho que o Valdir nos chamava assim quase como um sinônimo de “bobos”.
Penso eu.
Um dia, minha mãe descobriu que além de não almoçar, eu pegava do caixa da mercearia a notinha de duzentos cruzeiros para gastar no lanche.Levei uma baita bronca e meu consumo de hot-dog rareou.
Dez anos mais tarde, com dezenove anos de idade, comecei a trabalhar num município vizinho.Estava no ponto de ônibus quando vi o Valdir se aproximar.Embora eu morasse no mesmo bairro que ele, passei anos sem vê-lo, por conta de estudo, trabalho, namoro.
Eu fiquei felicíssima com aquele reencontro.A presença daquele homem me remetia a um passado literalmente gostoso.
Percebendo meu contentamento e ao reconhecer uma de suas freguesas antigas, ele se aproximou..
Passados cinco minutos de conversa, para minha surpresa - e desgosto -, o ex-dogueiro começou a me cantar na cara dura! Meu Deus, que situação!
Foram dias assim.Ele sabia o horário que eu estaria no parada de ônibus e começou a ir lá para me ver.Sem outra saída, mudei o meu local de embarque e solucionei o problema do flerte indesejado.
Eu fiquei com tanta raiva! E não foram pelas cantadas ou porque ele me puxava para me aplicar forçados beijos no rosto! Minha bronca se deu porque ele destruiu parte das minhas boas lembranças de infância.Queria que ele fosse para sempre o Valdir, ou o “Batata” (apelido da época) e não um homem chato que me paquerou.
E lembrar que quando eu comprava cachorro-quente do Valdir, a gente era do MESMO tamanho...Ah ,me esqueci de dizer: Valdir era anão.
(Maria Shu – 18 de março de 2009)
P.S.: Numa comunidade do Orkut da escola em que eu estudei, há um fórum sobre o cachorro-quente do Valdir.Um membro informa que ele atualmente mora em Atibaia, é casado e tem um filho chamado Samuel.