RODOVIÁRIA
Fim de tarde na rodoviária...
A multidão toma conta do local. O zum zum zum ensurdecedor nos enlouquece. Mendigos, bêbados, garotos e garotas de programa, pivetes, trabalhadores, todos ocupam o mesmo espaço; a maioria, cansada, querendo chegar em suas casas.
Uns param para um bate-papo ou para aliviarem a fome com um pastel gorduroso ou com um pão-de-queijo murcho enquanto esperam a condução; outros correm atrás dos trombadinhas, que por sua vez correm em busca de alguns trocados para comprarem o que comer ou o que cheirar.
Filas... enormes e desorganizadas filas crescem a cada instante. Início de tumulto aqui, princípio de discussão ali... Tudo porque um “apressadinho”, achando-se, talvez, melhor que os outros, tentava furar a fila, passando à frente dos que ali estavam há horas.
Finalmente a calmaria, graças à ação de alguns policiais que preguiçosamente passavam pelo local no momento da confusão. Por alguns instantes a paz parecia reinar naquele lugar de clima pesado... Parecia!...
Eis que de repente inicia-se um corre-corre descontrolado em direção a um dos quiosques. Era um jovem que, caído ao chão, tentava proteger a cabeça dos furiosos chutes desferidos por um homem que trabalhava na pastelaria. A platéia, inerte, assistia àquela deprimente cena de violência contra uma pessoa portadora de deficiência mental que, tentando amenizar-lhe a fome, acabara de “roubar” um pastel... Um simples e gorduroso pastel foi a causa de tamanha brutalidade.
Não me contive e parti em defesa do faminto “ladrão”. Bruscamente puxei o agressor pelo cós da calça e me pus entre os dois. Com um dos braços empurrava para trás o homem enraivecido; com o outro tentava ajudar o jovem que, sem forças e com o semblante assustado, buscava levantar-se. Quando já estava quase de pé, o homem possuído pela fúria deu-lhe uma rasteira que o fez cair com o rosto no chão... Por instantes esqueci-me do jovem e fui tentar acalmar o senhor que, bufando pelas ventas feito um touro enfurecido, esbravejava:
- Este safado roubou um pastel!... E não foi a primeira vez, ele faz isso todos os dias, é ‘só a gente se descuidar... Só que hoje ele teve o que merece!...
Em vão, eu tentava convencer-lhe de que roubar um pastel quando se está com fome é menos grave que agredir fisicamente uma pessoa, independente da sua classe social ou do seu estado físico. Tentei, ainda, conscientizá-lo de que se alguém o denunciasse, ele poderia responder a um processo por agressão física. Olhou-me nos olhos e com o dedo em riste disse que se eu estava protegendo um ladrão é porque sou da mesma “laia”. Disse-me também que procurasse a polícia e o denunciasse, mas que de nada adiantaria, pois se aquele “safado” aparecesse por lá novamente, levaria outra surra.
Não falei mais nada. Virei-me para o jovem, agora com o rosto machucado devido à queda, peguei-o pelo braço, levantei-o e pedi-lhe que fosse embora. Meio zonzo saiu em disparada carregando o pastel, talvez sua única refeição do dia.
Indignado com a brutalidade incontida daquele silvícola e sentindo-me ofendido com o que ele acabara de falar-me – fui chamado de ladrão -, resolvi então procurar o posto policial que ficava próximo dali e relatar o que acontecera. Indignação maior eu tive quando os policiais disseram-me para não me impressionar com o que acabei de presenciar, pois aquela era uma cena rotineira; que se eles fossem prender todos os que cometem pequenos furtos e todos os que tentam defender seu patrimônio, faltariam cadeias. Falaram-me, inclusive, que com o tempo eu me acostumaria e que cenas piores que aquelas eu ainda iria presenciar.
Sem agradecer a “atenção” dispensada pelos “justos” policiais, dei meia volta e retornei para a fila, que àquela altura já estava maior do que quando a deixei para socorrer o pobre miserável.
Já em casa, na cama, a noite parecia não ter fim... O sono não me chegava. Eu fechava os olhos e nada... Tentei, inclusive, a velha tática da contagem dos carneirinhos, mas não deu resultado. A imagem daquele rapaz sendo surrado por conta de um mísero pastel não me saía da memória. Foi assim até o dia amanhecer.
Levantei-me ressacado pelo sono, tomei um banho frio, fiz o desjejum e segui para o trabalho... Por todo o dia a cena do rapaz sendo espancado insistia em atormentar-me.
Fim de tarde na rodoviária... e lá estava eu novamente naquele local de clima carregado, em meio àquela multidão que buscava organizar-se em filas cada vez maiores e desorganizadas. De repente inicia-se um tumulto seguido de gritos: “pega ladrão, pega ladrão!...”
Era um jovem, de fisionomia bastante familiar, com um hematoma na face, que, após ter “roubado” uma fatia de bolo, fugia da fúria de um homem que o perseguia com um pedaço de pau na mão.
Abri o jornal que carregava sob o braço esquerdo e comecei a lê-lo, como se nada estivesse acontecendo à minha volta.