A ética do professor de Ética
Estou iniciando o segundo ano de um curso de Filosofia na UNESP de Marília e teríamos a primeira aula da disciplina Ética I.
Aguardava ansioso pelo início desta aula por dois motivos. Um deles porque ética e moralidade têm sido temas recorrentes de minhas reflexões nos meus modestos escritos neste recanto, talvez pelo fato de perceber na nossa sociedade uma certa displicência em relação à observância destas práticas, mais comumente percebida nos nossos homens públicos, justamente por serem públicos, mas que também pode ser percebida de forma sub-reptícia nos nossos relacionamentos cotidianos. O outro motivo é que iria finalmente satisfazer uma curiosidade de conhecer um professor veterano, já aposentado por outra escola, de quem ouvira no decorrer do primeiro ano muitos elogios acerca do conhecimento e bagagem cultural alcançados por muitos anos dedicados ao magistério. Minha ansiedade, portanto, era dupla.
Na primeira aula da disciplina, na semana anterior, o professor havia faltado. Nesta segunda aula, passado o horário de início, o professor não apareceu e todos que estávamos na sala de aula já cogitávamos de ir embora, pois corria uma notícia de que a disciplina havia sido substituída por outra. Não sabíamos bem o motivo de tal troca, do qual esperávamos nos inteirar em breve.
Então apareceu um professor já nosso conhecido, chefe do departamento de Filosofia, que veio nos dar as explicações necessárias sobre a substituição da disciplina Ética I pela disciplina Filosofia da Linguagem, que ele próprio viera ministrar. O motivo que ele trouxe da substituição foi espantoso, pelo menos para mim. Aquele professor veterano que iria dar aulas de Ética I não mais viria dar aulas porque se demitira. Até aí tudo bem, é um direito que lhe cabia como a qualquer um que não queira mais trabalhar em sua profissão. O que gerou espanto foi a circunstância especialmente danosa em que a demissão ocorreu. Acontece que aquele professor, em vista de sua condição de aposentado, já vinha, há algum tempo, no ano anterior, dando sinais de que encerraria sua carreira a qualquer momento. Mas o tempo ia passando e nada dele dar o passo definitivo. Diante da indecisão, a escola resolveu colocá-lo para ministrar a disciplina Ética I, neste ano, para o segundo ano de Filosofia. Para surpresa geral, logo depois de terminadas as férias escolares dos alunos, e iniciado o ano letivo, ele pediu demissão. Quer dizer, esperara passarem os três meses de relativa inatividade docente para ser remunerado por eles.
Entendo que qualquer assalariado que se visse na mesma situação, desde que não prejudicasse ninguém, teria a mesma atitude. No entanto, uma atitude dentro da lei, que lhe seja benéfica, só será neutra ou aceitável se nisso não perturbar uma ordem instituída. Acontece que a atitude daquele professor, embora legal, provocou uma perturbação na organização escolar, na medida em que desarvorou a programação de disciplinas do nosso curso, obrigando a um apressado rearranjo destas. Por conta da crise econômica atual, que reduziu a receita de impostos como o ICMS, cargos de professores solicitados, que poderiam suprir vagas inesperadas, não são preenchidos há um bom tempo. Para resolver o inesperado problema, a direção do curso resolveu realizar uma troca de disciplinas entre o segundo e o terceiro anos. Para o lugar da disciplina Ética I do segundo ano a direção trouxe a disciplina Filosofia da Linguagem do terceiro ano e a disciplina Ética I do segundo ano foi transferida para o terceiro ano. Até aí ainda tudo bem, uma simples troca que não traria problema algum, uma vez que não eram disciplinas interdependentes. Acontece que no terceiro ano há uma disciplina chamada Ética II, que seria uma sequência de Ética I. Assim duas disciplinas que teriam que ser dadas de forma sequencial serão dadas ao mesmo tempo, com evidente prejuízo para os alunos.
Logo, uma solução prática que nenhum desconforto parece ter provocado na direção do curso terá conseqüências funestas apenas para o lado mais fraco e último segmento nessa cadeia de relações, o dos alunos. Se estes terão dificuldades para assimilar duas disciplinas interdependentes que serão dadas simultaneamente é problema deles. Resolveu-se o problema imediato e ponto.
O que se deduziu é que se o professor tivesse pedido demissão no final do ano passado, e não agora, logo no início deste ano letivo, daria tempo para que a direção do curso providenciasse uma solução melhor, talvez conseguindo algum professor substituto de fora. A emergência gerou uma solução esdrúxula.
Após estas explicações, o chefe do departamento de Filosofia lançou então um comentário exemplar sobre a forma como encaramos situações do tipo. Eis aí sua pérola: “Não devemos criticar esse professor, pois não temos muita certeza se nós mesmos não tomaremos a mesma atitude quando chegar a nossa vez.”
Está bem. Realmente eu também não tenho muita certeza do que faria numa situação-limite de ameaça que me exigisse uma atitude de coragem moral. Mas de uma coisa tenho certeza. A de que nunca vou tomar uma atitude para conspurcar minha carreira e violar meus princípios morais por causa de três salários a mais na minha conta bancária. Principalmente se eu for um professor de Ética.
Postscriptum: Após o pertinente comentário aí embaixo de Mestreescola, a quem agradeço, fiz uma alteração no texto na parte que fala sobre férias escolares, que deu a impressão de que professores, junto com os alunos, têm três meses de férias. Na verdade eles têm um mês de férias e no tempo restante ficam de sobreaviso.