Mãe de mel,filho de fel(I)

À poesia "Filho de de Mel",de Schyrlei Pinheiro,postada aqui no recanto,respondi com "Mãe de Mel".Sucesso,muitos escrevem recados e mandam e-mails pedindo para repassar,declamar.Bom,assim soi ser...

Mas,noutro dia,parei para pensar a respeito.Enquanto psicóloga,já ouvi cada relato sobre "filhos de fel"!Biológicos ou adotados,há pessoas que são muito más ou ingratas,que maltratam idosos,pais ou mães sozinhos(com casal,é mais difícil...vá alguém,perder o companheiroe depender,de alguma forma,dos filhos!Vá morar em casa alheia...Dos "filhos",os mesmos qu eforam tão bem criados antes...).

A bem da verdade,devo anunciar,que felizmente, a proporção de maus para bons filhos, é mínima...Em geral-até pela "Lei do retorno" e muito porque tendemos a repetir,em nossa vida afetiva-as pessoas amam,respeitam e consideram seus pais.Felizmente,somos de mel,pela natureza herdada das entregas maternas,do amor,do carinho...

Mas certa feita,quando morei em Belém,fui procurada por uma senhora,mãe viúva de filho adulto jovem,uns vinte anos.O marido morrera cedo.Jovem ainda,não aceitou nenhum dos muito pedidos de casamento.Era bonita,traços finos e uma bondade sem tamanho no coração...O garoto ficara órfão de pai,ainda de colo.

A mãe,fizera do filho,sua maior motivação de vida.Nada faltava ao pequeno.Para complementar a pequena pensão,ela que tinha de pagar aluguel,trabalhava em casa-pois não queria expor o filho à sua ausência,quando não estava na escola.Lavava roupa,fazia picolé em saquinhos para vender,bolos,cozinhava pupunha,milho,para servir a outros vendedores,fazia consertos em roupas,bordava ponto de cruz em sacos alvejados,muitos para atender à demanda...Depois montou uma pequena lavanderia.Lavava,passava eentregava,pois o garoto precisava estudar,não devia se expor aos perigos da rua,etc.

Quando queria algo,ele gritava,Ela falava doce,obedecia,corría para atendêlo.Vestia-se nos trinques.Tudo de marca.Em vão a mãe tentava lhe mostrar que marca de roupa e tênis não faz caráter.Ele chanteageava.Será que ela ia querer ver o rebento humilhada,usando produtos vendidos em barracas e lojinhas?Ela o achavalindo,nas roupas ,nos Nike que comprava.e entendia os motivos dele.A mãe,usava roupas doadas pelas freguesas.Chinelinhos baratos.Não ia à manicure,não pintava os cabelos que branqueavam precocemente.Se um dente doía,arrancava-o no posto de saúde.E ele a usar aparelho,dentes brilhado com o branqueamento.

Comprava presentes para professores,na esperança secreta de que o filhote recebesse melhor tratamento.Se ,adolescente,perigava em alguma matéria,corria à escola,dizer que adoecera,que ele não pudera estudar mais...As professoras viam aquela figura calma e educada,limpinha,humilde e acabavam dando uma chance ao malandrinho.

Ele freqüentava clubes,não apresentava a mãe às namoradas ,sempre mais ricas.Era inteligente,apesar de tudo.Quando estava concluindo o segundo grau,começou a roubar a mãe.A ser muito mais exigente,agressivo mesmo,às vezes,a xingava ou empurrava contra a parede.Descobriu que ele estava usando drogas.Era coisa antiga,mas ela acreditava ser algo recente.

Cedo,ele entrara em uma gangue,que atraía os meninos com pichação.Depois,como prova,devia entregar drogas ,como avião.Viciou-se.Chegava tarde.Dizia à mãe que precisava comprar um livro,de dinheiro para uma excursão escolar.Não ia,comprava suas drogas,pagava seus passadores.

Oferecia-se para ir pagar a luz voltava desarvorado,dizendo que fôra roubado.Ela pensava ou dizia:"por isso,quando era pequeno,eu não o deixava fazer nada na rua".E para mim:"O mundo hoje é perigoso" .

A vizinha,que era minha paciente no Posto de psiquiatria, dizia-me que a levara porque ele a derrubara,segundo ela,atrás d egrana.Com um fio de voz,a mãe justificava:"-Foi apenas um empurrãozinho,ele nem me viu,a droga o deixa tonto."A outra abanou a cabeça,piscou para mim e levantou a blusa da mártir:escoriações,edemas,violeta roxas e púrpuras na pele clara.Marcas redondas;"Ele já a queimou com cigarro,até ela dar o dinheiro de pagar a água".A mãe:"-Se ele não levasse a quantia,mana,os traficantes o matariam".Falava no português bonito,do paraense.Com a delicadeza:nos chamam de "manos",de "maninhos"...

Chorava,mansamente.Perguntei:

-Então,a senhora quer fazer psicoterapia?

-Não,eu não preciso.Vim pedir,pelo amor de Deus,para a senhora ir lá em casa,atender o menino,que não levanta da cama.Está com medo de apanhar na rua...

Só desistiu,quando ele ameaçou matar qualquer psicólogo que ela arranjasse. E lhe atirou uma manga,das conhecidas e fartas mangueiras das ruas de Belém.Quebrou-lhe o nariz.Se a pobre mulher deitava-se um pouco na rede, a pressão altíssima,ele passava e a derrubava ao chão:

-Tá muito preguiçosa ,véia...

Convencida a fazer terapia me dizia:

-"Quando ele sai,oro.digo:"Senhor,o que não posso fazer por ele,tu podes..."

Mãe de mel,filho de fel...

Foi um trabalho paulatino,fazer essa mãe recuperar a auto-estima,perdida há tantos anos.No mecanismo de compensações ,compensara a perda do esposo,suprindo filho ingrato com todas as coisas do mundo consumista...Por condicionamento,habituara-se à menosvalia.E nenhuma gratidão. Nunca.Depois que vim embora,soube que ele morrera,num briga de gangues.Deixou um neto...Será que ela iria repetir o derramar da ânfora,mel puro sobre um fel que ela própria,sem perceber,produzira com tantos excessos,nenhum limite?Quero crer que aprendeu a mudar.Mas que um lindo sorriso de criança não a atraia irresistivelmente para a desgraça,qual a serpente ao animalzinho frágil...

Belo Horizonte,02/05/2006