DOR > VINHO SANGUE DO AMOR…

O novelista e ensaísta francês Louis Bottach, esmagado certa vez pela dor definiu de forma melancólica, porém real e de difícil reflexão, o que pode ser a mais completa síntese da caminhada do homem pela existência. Cara a cara com o seu espelho a fincar estilhaços no coração concluiu: “É de dor a primeira impressão do homem, ao chegar ao mundo, e de dor é também a derradeira que dele se despede”. Difícil é aceitar que esta reflexão, se sincera, joga-nos montanha abaixo ou asfixia-nos pelas lavas do Vesúvio da rotina. Desde o nascer, incessantemente nos iludimos com o adjetivo fugaz da “vida bela” - sim, a vida é bela, mas como desfrutarmos do melhor vinho se o nosso paladar mal reconhece uma água com gás? Fellipe Gerfaut sugere: “As grandes dores não provocam lágrimas. Quando nos sentimos aniquilados, não choramos, sangramos”.

A dor quando vivida na sua sincera reflexão é este vinho-sangue que nos aprimora o paladar e evoca-nos o sentido íntimo do real significado da “vida bela” - Bela não pelo prazer volátil que nos faz aterrissar sem asas em sonhos prisioneiros, mas pela dor que o prazer nos causa ao derrubar muros de lamentações, transformando-os em pontes erigidas sobre o orgulho - nada é mais prazeroso do que pisar na própria dor orgulhosa. Quando camuflamos a dor tornamo-nos presas da amargura - bebemos o cálice daquele vinho mal armazenado, que sempre em pé, convicto de ser suas tolas pérolas, resseca a cortiça humilde do amor que o mantêm vivo e deixa entrar a umidade odiosa, indefectível veneno a fazer vinagre de uma prodigiosa safra de oportunidades para crescer, amadurecer e renovar com uvas frescas o pomar da vida.

O oceano da vida visto da superfície pode revelar somente o sol no horizonte, belo, mas incapaz de aquecer a escuridão de suas entranhas - talvez seja por isso que o Deus aplaudido de tantas religiões fomente ainda discussões tão fúteis e grosseiras - este Deus é escravo das idéias dos homens que não querem mergulhar cada vez mais no sentido de sua existência - porque isso na maioria das vezes traz a dor ao desmascarar a consciência que navega na superfície de ondas volumosas, cheias de si, cheias de verdades indecentes - a pior delas diz revelar que o espírito de Deus usa intermediários, confundem mestres que iluminam o caminho com mercenários profetas de prontidão. É com este Deus domesticado que dizem curar a dor. Triste homo-sapiens que se resiste reconhecer na dor o milagre para mergulhar no seu próprio oceano - É lá, a cem metros de profundidade, no fundo do poço que acabamos por aquecer o coração da alma, quando sozinhos lutamos e vencemos as criaturas aventureiras e obscuras da solidão, cujo estandarte triunfante em letras alongadas grafa-se: “medo”. Temos medo de praticamente tudo que é belo e consequentemente nos traz felicidade. Impossível ser feliz sem amar, ainda mais impensável é amar sem sentir dor, embora para o amor a dor seja um vinho consagrado às reflexões que nos conquistam a alma. Quem ama sente a dor aguda de abandonar suas trincheiras para abraçar e beijar seus adversários. Para amar, sobretudo é preciso perder - dar o primeiro passo rumo à dor.

Sofrer devia ser o antônimo de dor. A dor nos torna conscientes, alertas, denuncia nossas próprias armadilhas. O sofrimento ao contrário é a dor esquecida que de tempo em tempo é alçado às lembranças. A dor intensamente saboreada corrige-nos o rumo da caminhada, franqueia-nos a ponte da felicidade, redescobrindo a sensibilidade da alma como afirma Beethoven; “A alma sensível é como harpa que ressoa com um simples sopro”, (de dor!).

Friedrich Hebbel, poeta e dramaturgo alemão, comunga com a dor que ao invés da lágrima fingida verte o vinho - sangue, transformando o homem que a sente na sua maior conquista: “A mais leve aragem arrebata-nos as coroas de louros; mas as coroas de espinhos nem a mais espantosa das tempestades é capaz de arrancá-las” e ao escrever a novela Estátua de Mármore imediatamente confirma: “Se o mármore pudesse sentir, haveria de, com certeza, queixar-se das marteladas que o transformam num deus”.

O real batismo a que se submeteu o grande Rabi, Jesus de Nazaré, “O Redentor” de todos os Cristãos, parece estar longe de ser compreendido - a todo o momento sua mensagem parece gritar socorro ao se fazer ouvir em nossos corações despedaçados: “batize-se mergulhando na dor do perdão (perdoar a si mesmo - reconhecer que somos nossos próprios inimigos) e venha à tona nos braços do amor”.

Permita-me oferecer um cálice deste vinho-sangue, brinde amargo, amoroso e conflitante - enquanto dançamos divinizados, eis a esperança esclarecedora de Bottach: “A grandeza da alma é uma flor oculta e rara que só exala o seu admirável perfume quando a agita o vento dos tormentos”.



Moryan é escritor, palestrante e publicitário.
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