ASAS DE VIDRO…

Havia num certo mosteiro um discípulo chamado “Sabichão” - era do tipo que de tudo era metido a saber. Desafiava os mestres com perguntas hilárias e, de certo modo, com sua inteligência acabava por ridicularizá-los. Num dia de grande festa em que todos entoavam seus mantras a fim de preparar a grande chegada de um respeitado mestre zen, Sabichão estava a arquitetar seus planos diabólicos para desmascarar a sapiência daquele que todos aclamavam como o “Grande Mestre da Diferença”. Mal o Mestre pôs os pés no templo, Sabichão disparou sua flecha: “Se você é o mestre dos mestres aponta-nos o céu e o inferno”. O mestre fitou-o com os olhos piedosos e respondeu: “Você é o idiota dos idiotas” - e em seguida soltou uma gargalhada que se fez ouvir em cada canto do templo. Todos ficaram boquiabertos, aquele não parecia ser o modo de um legítimo mestre ensinar - esqueceram porém que ele era o “Mestre da Diferença”. Sabichão ficou irado e disse: “Você é um filho da p…”. O Mestre soltou uma gargalhada ainda mais forte e pronunciou: “Eis o Inferno queridos irmãos”. Sabichão por um momento compreendeu que a sua ira o tinha colocado no Inferno… compreendeu que o Inferno não era um lugar, mas um estado mental. Prontamente, pela primeira vez, Sabichão pediu desculpas e abraçou humildemente o Mestre. Outra vez, risonho, proferiu o Mestre: “Eis o céu”. Sabichão tinha um admirador, a quem todos chamavam de “Soberba”. Este não suportou vê-lo desmascarado e emendou outra pergunta: “E Deus… onde mora Deus?” “No Inferno” - respondeu o Mestre, “e acaba de salvar seu amigo”.

Somos todos estes “Sabichões ou Soberbas” procurando em todos os lugares o caminho que nos conduz ao céu - como um paraíso perdido, cujo Deus ou deuses nos protegeriam de todo o mal. Curiosamente não descobrimos que esta busca só nos leva para “um Inferno em nós” - cada vez que buscamos um céu fora, como um lugar, mais mergulhados no Inferno estamos. Todos os lugares e estados, divinos ou diabólicos, coexistem em nós. Migramos de minuto a minuto entre o Céu e o Inferno. Quanto mais imploramos em nós pela humildade, paciência e caridade, mais… e mais confiamos à fé seu verdadeiro papel - o de transformar, pela persistência, nossas inquietas buscas num verdadeiro paraíso, ungido de boas ações que revelam no “Ser” a glória manifesta de todo Céu.

Deus como criador zeloso de suas criaturas não poderia estar no céu - como Ele poderia nos escutar naqueles momentos infernais de sofrimentos taciturnos, quando por vezes até perdemos as esperanças? É por habitarmos sempre mais nos estados infernais que Deus não mora no Céu. Ele é o resgate vigilante que impregna a alma a todo instante, exortando-a para a compreensão de quem nos fala Blaise Pascal: “Entre nós e o céu, o inferno ou o nada, nada mais há do que a vida, a coisa mais frágil do mundo”. Sim, a vida é frágil e a quebramos nessa travessia dissimulada entre o Céu e o Inferno. Acontece sempre quando não admitimos que nossas asas são feitas de vidro - não nos corrigimos o equívoco de uma busca norteada pelo desequilíbrio emocional em que impera o contra ataque diário - é guerra contra guerra, pedradas contra pedradas, Sabichões contra sabichões. Como vivemos, (conscientes de nossas asas de vidro?) - eis o que realmente importa para consolidarmos a procura interior que nos leva a entender onde fica o Céu, Inferno e a morada do Grande Criador.

Na Costa Rica, na floresta de Monteverde habita uma borboleta conhecida como “Asas de Vidro”. Suas asas são tão transparentes e cintilantes que a permitem atravessar a ponte do seu Céu e Inferno diário tranqüilamente. Elas filtram completamente a luz ou a escuridão, deixando-as passar sem nenhum contra ataque. Simplesmente absorvem o amor do ódio e extraem o ódio do amor - desta forma parecem ficar invisíveis para os diabólicos pássaros que as perseguem como alimento preferido. Ao bater suas asas de vidro sugando o néctar de flor em flor é como se a todo o momento estivesse ouvindo Deus lá do Inferno: “Voe para o mais alto que possa conseguir em você que esta ponte não será mais entre o céu e o inferno, mas entre Eu, Você e o Coração de todas as flores. Sairei do Inferno e juntos entraremos no paraíso”… o paraíso de Deus em nós mesmos. Zelemos por nossas asas de vidro - se não for por nós, que seja por Ele. Salvemos Deus do Inferno!


Moryan é escritor, palestrante e publicitário.
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