A história mal contada
Ela chegou pedindo pousada para uns dias; precisava concluir os estudos e não tinha para onde ir. Fiquei com o coração dobrado na hora que vi seu rosto transfigurado mostrando toda dor que sentia. Deixei que ficasse.
Em proporção que os dias foram passando, eu ouvia um relato atrás de outro: sua infância terrível; pais alcoólatras, irmã de quatorze anos assassinada, casa dos pais sem móveis; que para manter o vício vendiam tudo que tinham. Espancamento, gritos, o pai tentando matá-la...fome, frio, castigo...
Pensei: Essa menina deve ser muito forte para ter suportado tudo isso sem que tenha perdido a ¨bola¨.Ela continuava sua ladainha: cada casa por onde tinha passado tinha lhe causado dor.
Fui ficando de orelhas em pé. Disse-lhe que não podia ficar com ela como empregada, mas lhe daria uma quantia para que ela comprasse o essencial, e enquanto isso, iria procurando um emprego que lhe desse um salário digno.
Eu sempre acordava cedo, ajeitava a primeira refeição, colocava tudo à mesa, e lá pelas oito horas ela saia do quarto, sempre com aquele jeitinho de quem está com a vida ganha.
_Dona Ione, dormi como nunca.
_Que bom! Venha tomar seu café.
Ela sentava, comia cheia de dengo, e depois ia passar uma vassoura na casa. Por volta das nove e meia, sentava e ia descansar. Eu continuava, cozinhando, lavando, pondo tudo em ordem, pois a hora da escola estava chegando. Onze horas colocava almoço na mesa, meu filho já tomado banho; quase pronto para sair às 12:30 hs. Quando faltavam quinze minutos para uma da tarde, saia essa garota desembestada para tomar banho, se aprontar para ir à escola, mas ainda não tinha almoçado.
_Venha comer! Se não você vai chegar com fome no colégio, e aí vai dizer que não teve tempo para almoçar.
Percebi em poucos dias o porquê dela não almoçar a tempo quando trabalhava na outra casa. E chegava ao colégio falando mal da patroa. Insistia para que ela só saísse depois de almoçar. Meu esposo dizia:
_Você agora arrumou carga. Você agora tem a obrigação de cuidar do seu filho e de uma moça que não quer crescer. Você não está esquecendo que ela já tem vinte e quatro anos, não?
Percebia que ele estava com razão. Mas tinha começado largo e agora teria que tentar ir até o fim. À tarde, por volta das cinco horas, ela regressava, deixava os livros no terraço, e me avisava:
_Dona Ione, vou ali levar minhas amigas em casa!
Voltava lá pelas seis horas, com mais três colegas do lado. Iam bordar. Chamava para jantar, ela me respondia que depois iria. Estava sem fome. Quando eu terminava, e me preparava parar sair, ela já estava preparando refeição para as colegas que moravam há dez metros de casa.
Chamei e orientei, mostrei-lhe que aquilo não estava direito. Fez ouvido de mercador.
Um dia descobri que ela estava dizendo que na outra casa onde trabalhara, trabalhava como escrava, mas pelo menos ganhava; enquanto que na minha trabalhava pra burro, e de graça. A pessoa lhe respondeu: Como você comprou todo seu material escolar? E a dívida que você tinha? Você naquele dia tinha nos dito que dona Ione pagara tudo.
Fiquei triste. Amava essa garota como uma filha. O que ela queria mais? Percebi que eu é que estava permitindo todo abuso, porque até a roupa dela quem estava lavando era eu. Estava na hora de dar um basta.
Ela aceitou, e arrumou um emprego. Levei-a na casa dos novos patrões. Não ficou nem dois meses. Voltou com uma história de que quase tinha apanhado. Porém já tinha percebido que a porta que antes estava escancarada, hoje estava fechada. O tempo da bonança se foi, e ela, ela mesmo deixara passar. A mamãezona ou mãe grande como me chamava, se fora; agora no lugar estava outra que não cederia mais às lágrimas nem a histórias de sofrimentos.
Continua dramatizando. Cada dia surge com uma história diferente. Quando não tem para quem apelar, vem até minha casa e pergunta se eu vou sair. Caso minha resposta seja negativa, passa o dia todo comigo. Come, bebe, toma banho, descansa, e depois à tardinha vai embora. Não aceito que ela mecha uma palha sequer. Prefiro continuar na minha vidinha, porém descansada. Não preciso passar por isso outra vez, porque aprendi a duras penas que dei ouvido a uma história mal contada.