Mudar de vida

Somos uns autênticos bonecos de dar corda!...

Mal o dia começa a raiar, o sono dos justos é bruscamente interrompido pelo estridente zumbido do despertador, que em má hora fomos obrigados a colocar ma mesinha de cabeceira, e nesse momento todo um mecanismo programado ao longo dos anos é accionado. Vem a espreguiçadela, o esfregar com as mãos os olhos ensonados, verticalizar o tronco e ficar alguns segundos a ganhar coragem para colocar o pé no tapete, procurar ainda às escuras as pantufas deixadas em desalinho na noite anterior.

A partir daí, tudo é mecânico. A inevitável visita ao w.c. que faz com que durante alguns minutos se processe - normalmente com a ajuda do primeiro cigarrito do dia - o lento mas progressivo despertar. A seguir o duche da ordem que nos põe em forma. Definitivamente acordados começamos a sentir - para além de uma sensação de bem estar e frescura -, o bichinho a roer; É o estômago a lembrar da necessidade do pequeno-almoço. Está na hora das torradinhas bem quentinhas e do habitual café com leite a acompanhar, mas tem que ser rapidinho, que o autocarro pode demorar mais que o costume no percurso a fazer, por causa da intensidade do tráfego, e aí começam as chatices.

Passo acelerado, certifico-me de ter dado as duas voltas à chave da porta, dirijo-me à paragem, onde todos os dias ,apanho o transporte, e aí começo a ouvir os comentários do dia. À força de tanta viagem juntos, já se conhecem, são quase uma família. Uns dizem que o Presidente do Benfica não vai conseguir o empréstimo dos Ingleses, que é uma vergonha não terem pago na altura devida o passe do jogador tal, que nunca se viu isto, o nome de Portugal anda de boca em boca pela negativa, já nos chamam caloteiros. Outros, de jornal em riste, troçam das derrapagens financeiras da Expo noventa e oito - são só milhões -, o nosso País é pobre demais para estas loucuras. Fazem até apostas sobre as condições em que o complexo estará no dia da abertura.

É notório que não estão a falar só entre eles, o tom de voz é tão alto, que tenho a certeza que a intenção é fazerem ouvir-se por todos os passageiros.

Entretanto ouve-se um burburinho lá na parte da frente, uns impropérios, mimos bem brejeiros dirigidos a uma senhora com dificuldade em estacionar o carro, e por isso a provocar uma paragem forçada e o respectivo aumento da fila em que nos encontramos. Um diz que a madame tirou a carta de condução por correspondência, outro que devia estar a lavar a louça, e com toda esta algazarra começo a avistar o local onde vou sair. Pronto, cheguei ao destino. As despedidas do costume, os votos de um bom dia de trabalho e lá dispersaram todos em grande correria. - Vá lá, ainda faltam cinco minutos!... dá para comprar o jornal e tomar o habitual cafezinho, mas tem de ser rápido que o chefe já deve estar à nossa espera.

- Não tem palha na cama, o artolas!...- . Atravesso a rua, subo os vinte e sete degraus da escada, e lá estão os palermas todos. – Uau!... falta a Leonor dos telefones, afinal não fui o ultimo a chegar.

Cumprimentei os presentes com um “ Bom dia meus senhores, tudo nos conformes?”, recebi como resposta uns sorrisos amarelos, como que a dizer “que remédio! está tudo em ordem”. Só o Jeremias não respondeu porque estava ocupado a contar a última anedota. Dizia ele: Porque é que as louras vão ao banco, levantam todo o dinheiro e cinco minutos depois voltam a depositá-lo? Toda a gente franze o sobrolho e encolhe os ombros, como que a dizer que não sabem. Vai daí, ele no seu jeito brincalhão dá uma risada de desprezo e diz: “ É para conferir a massa!” Uns sorriem, outros nem por isso, se calhar não entenderam e o chefe dá duas tossidelas, que querem dizer nem mais nem menos o seguinte: - Acabou-se o recreio, estamos aqui para trabalhar, brincar é lá fora !... Acto contínuo todos se embrenham na papelada. Pasta para aqui, documentos para acolá, telefonemas, letras protestadas, conferência de stock’s, depósitos, ordenar a correspondência, os lançamentos do costume e entretanto chega a hora do almoço.

Nova corridinha para o autocarro, que pode ser que esteja algum a chegar. É isso, lá vem um !... Entrei, olhei, e lá estava um lugar vazio. Uma velhota muito gorda, fez de conta que se encolhia um pouco, como que a querer desocupar o segundo lugar. Sentei-me e lá vim todo o percurso com uma nádega fora do banco, ainda por cima a senhora cheirava a peixe que tolhia. De vez em quando olhava para mim e sorria como que a dizer: Se não estás bem põe-te!... Ainda esbocei um gesto tímido para abrir a janela, mas para isso tinha que me pôr em cima da senhora. Desisti!...O cheiro provocava uma enorme sensação de desconforto, graças a Deus que nas paragens, aquando da entrada e saída de pessoas, penetrava algum ar fresco que de certa forma ajudava a desanuviar o ambiente. Mas que raio de viagem, até perco o apetite.

Ainda faltam três paragens, tenho de começar a pensar em almoçar perto do emprego, pensava eu cá para os meus botões.

Agora, ao contrário da anterior viagem, são as mulheres que falam para a assistência. Uma diz que os saldos na Zara são o máximo; Ia carregada de sacos plásticos. A outra estava preocupada em não saber o que fazer para o almoço.

E eles todos calados, numa de importância, muito machões.

Ufa, finalmente cheguei!... Após ter descido, dei uma olhadela ao relógio e verifiquei que tinha ganho cinco minutos em relação ao tempo habitualmente gasto. Nada mau, afinal nem tudo corria mal.

Cheguei a casa e o Boby ao sentir mexer na fechadura, ladrou três vezes como de costume. Abri a porta, já ele tinha descido as escadas e dava largas ao seu contentamento pela minha chegada. A cauda não parava, saltava esfuziante à espera de uma festinha. Lá fiz o carinho que tanto aprecia e dirigi-me imediatamente ao frigorífico. Tinha sopa de quatro dias e um pouco de arroz que sobrara da noite passada. Bom, é só fritar uma fêvera, levar o resto ao microondas e fica tudo na maior.

Enquanto almoçava ia dando ao Boby uns bocadinhos de carne para o desougar - não se calava - fui ouvindo o telejornal e de vez em quando lá dava uma olhadela às imagens. Morreu o Frank Sinatra, coitado, antes ele que eu. Ultimam-se os preparativos para a abertura da Expo, mas está tudo muito atrasado à boa maneira dos portugueses. Tudo é guardado para a última hora, embora os responsáveis afirmem que no dia D estará tudo completamente pronto.

Mais uma espreitadela ao relógio - Oh diabo, já não tenho tempo de pôr a louça na banca -, visto o casaco depressinha e nem sequer posso lavar os dentes. Faço uma festinha ao cão - que não se conforma com a minha saída e ladra mais algumas vezes - e lá me precipito para a paragem do autocarro que demorou dez minutos a chegar. Até aqui tudo normal, mas o trânsito é ainda mais caótico do que de manhã. Vamos mesmo a passo de caracol; onde é que isto irá parar! Quase todos os carros até onde a minha vista alcança levam apenas uma pessoa - o condutor -. É claro que se todos saíssem para a rua com o automóvel, isto ficava completamente bloqueado. Bem faço eu que deixo o meu na garagem e utilizo os transportes; pelo menos não tenho que andar às voltas para arranjar estacionamento.

Olha, aquele ali de Mercêdes tem cara de quem nunca andou doutra forma que não seja com a própria viatura. O outro a seguir deve ser um daqueles executivos que só não vão com o carro para o escritório - que fica no décimo andar - porque não podem. Aquela ali com o cãozinho, está bem, não pode ir com ele nos transportes públicos e o cachorro também tem direito à sua passeatazinha.

Mas que chatice, isto não há meio de andar!... Com estas e com outras já são catorze e quarenta e já devia estar a trabalhar à dez minutos, – vou ter que ouvir o Chefe!... O sujeito do banco da frente lamenta-se ao que vai ao lado, do filho que só lhe tem dado desgostos. Agora que está reformado e devia levar uma vida pacata com muita calma e sem aborrecimentos, está completamente arrasado com os problemas que lhe arranja. Anda metido na droga, deve dinheiro a todo o cão e gato, e ultimamente até lhe tem desaparecido alguns objectos de casa, onde diz não haver buracos, e que desconfia ser ele o autor de tais barbaridades.

Já são catorze e cinquenta e cinco, estou bem arranjado! O chefe vai mandar-se ao ar, e esta semana já é a segunda vez. Alto!, agora parece que é a valer. Até que enfim, bem vamos lá dar uma corridinha. Desta vez subi as escadas de dois em dois degraus - sempre é mais rápido -, entro a porta e deparo com o chefe, com umas trombas que só visto, parecia um hipopótamo a quem o tratador por esquecimento não serviu o jantar. Ao encarar comigo, com aquela pose do quero, mando e posso, vira ligeiramente o pescoço na direcção do relógio de parede – só se preocupa com a hora de entrada, quando ficamos até às quinhentas não se aborrece -e vocifera: - Isto é que são horas de chegar?. Apetecia-me mandá-lo à fava, mas como sei que só ia complicar as coisas, lá lhe expliquei, que foi por causa dos transportes, o trânsito está diabólico e não tinha tido a menor possibilidade de chegar a horas. Lá rosnou qualquer coisa que eu não entendi, baixei a cabeça em sinal de pedido de desculpas, e aproveitando a deixa – assim como quem não quer a coisa – comecei a mexer na papelada que tinha em cima da secretária, para dar a ideia de que estava muito ocupado e o homem lá acalmou.

Todos os passos dados durante a manhã, foram incessantemente repetidos, Um após outro numa rotina que dói, até que chegou a hora de sair. Voltei a fazer o percurso em direcção a casa, tudo igualzinho, só que desta vez antes de o fazer, tive que regressar ao escritório por ter esquecido o jornal que se encontrava ma mesinha de apoio, ao lado da secretária, ainda dobradinho tal e qual como o comprara. Na camioneta ouvi exactamente as mesmas lengalengas, a mesma conversa da treta. A maioria dos utentes que comigo viajavam ia silenciosa – notava-se em alguns casos um certo cansaço típico de quem trabalhou arduamente um dia inteiro – o único corte neste silencio sepulcral, era feito por uma menina aí com uns quatro anos, que não parava de gritar enquanto esperneava e pontapeava a pobre mãe, que pelos vistos não lhe terá dado o gelado que tanto reivindicava. A senhora, de aparência bastante humilde exibia um sorriso forçado como que a pedir desculpa do chinfrim; tentava com todas as forças segurar o diabrete. Se calhar até nem tinha dinheiro para satisfazer o desejo da miúda e esta completamente a leste das realidades da vida, ainda só pensa, que gritando desalmadamente consegue atingir os objectivos. Se fosse noutro lugar, comprava-lhe o sorvete só para me livrar daquela barulheira.

Tirando o facto de ter começado a cair uma chuva pouco intensa mas aborrecida – a chamada molha todos – nada mais, digno de registo se passou durante a viagem. Chegado ao términus, saí e abriguei-me conforme pude encostado aos portais dos prédios, mas como começou a chover com maior intensidade entrei numa confeitaria e resolvi tomar um aperitivo. Decidi-me por um Porto seco para abrir o apetite. Enquanto saboreava a deliciosa bebida varri com olhar guloso os artigos expostos no balcão envidraçado e pensei: tenho tripas no congelador, talvez não fosse má ideia levar uma daquelas pizzas que tão bom aspecto têm. Há cerveja lá em casa, - é isso mesmo – lá comprei a dita cuja, bem quentinha, embalada numa caixa de cartão e como entretanto tinha parado de chover, lá fui para casa todo contente.

O Boby mal sentiu o rodar da chave na fechadura fez um restolho dos diabos, ficou completamente doido com a minha chegada.

Provavelmente, devido ao faro apuradíssimo que possui rapidamente se apercebeu de que o que eu trazia – diga-se de passagem que cheirava muito bem – não era só para mim, alguma coisa lhe havia de tocar, daí o seu super contentamento.

Entrei, fiz-lhe a festinha habitual, pousei a pizza na mesa da cozinha e dirigi-me à sala de estar para ligar a T. V. – estava quase na hora do noticiário – pendurei o casaco , sentei-me um pouco no sofá – o cão fez questão de vir sentar-se ao meu lado – e comecei por tirar os sapatos e em sua substituição calçar as velhas pantufas que tanto gosto de usar.

Vi o noticiário, agora nas calmas e no final lá fui tratar do nosso jantar. A pizza ainda estava morna, deitei num copo uma cerveja geladinha e lá comecei a comer com a presença sempre atenta e pronta a receber do cachorro a quem de vez em quando dava um pouco do manjar. Quando acabei apetecia-me tomar um cafezinho mas só o trabalho de ter que me voltar a calçar, sair à rua com o tempo assim de chuva, não! não vale a pena, fumo um cigarrito e isto passa, pensei eu. Decidi então ler um pouco o jornal e saborear calmamente um SG Gigante. Depois de ter lido duma ponta à outra todas as novidades dei uma olhada na penúltima página à programação da televisão e verifiquei com bastante agrado que faltava apenas meia hora para o inicio da projecção de “O carteiro de Pablo Neruda” um filme que há muito queria ver, principalmente para satisfazer a curiosidade em relação a tudo quanto de bom tenho lido sobre o mesmo. Para aproveitar o tempo enquanto não começava o filme fui lavar a louça e dar uma arrumadela à cozinha, não é muito do meu agrado mas tem de ser. O Boby não me larga as pernas, quer brincadeira. É uma excelente companhia mas às vezes chateia, estou sempre com receio de o pisar.

Quando acabei a arrumação, depois de ter limpo os pratos e talheres, deitado ao lixo os restos do almoço e do jantar, com tudo nos trinques, fui para a sala. Despi-me e vesti o pijama, depois, bem instalado saboreei as imagens do tal filme que estava a começar naquele momento. Espectacular! é um autêntico tratado de poesia, uma demonstração fiel da importância da amizade, entrega, humildade e amor. Espero um dia revê-lo.

Não há dúvida que a vida é feita de coisas simples, pedaços de nada que se completam nos sentidos. O filme terminou e depressa concluí que tinha chegado a hora de ir para a cama, que um novo dia se avizinhava e era preciso estar em forma, para repetir - mais coisa menos coisa - todas as situações aqui descritas. Nada se altera, a rotina faz-nos embrutecer, parar no tempo, proporciona o completo e inequívoco alheamento da realidade que nos cerca.

Raios partam isto, tenho que mudar de vida!...

Gaspar Silva
Enviado por Gaspar Silva em 13/03/2009
Código do texto: T1483804