DESTA VEZ, EU FALO
Desta vez eu falo.
Falo de estupro e de excomunhão. Falo de horror.
Falo de uma menina de nove anos, grávida de embriões gêmeos, e em risco de vida.
Falo de uma menina ainda tão pequena, ainda tão criança, que o seu corpinho não tem espaço físico para alojar e desenvolver os embriões do que, um dia, poderiam vir a ser outras crianças.
Falo de uma menina salva no limite do que era suportável á sua condição. Salva por profissionais, nas melhores condições médicas disponíveis, amparados pela lei e, principalmente, amparados por aquilo que é o seu juramento e a sua missão: -preservar a vida humana, evitar a doença, os males do corpo e, reflexamente, aqueles da alma.
Falo de uma menina que tem recebido muito pouco dos outros seres humanos, que são, afinal, os responsáveis pela sua presença neste mundo. Mas que, desta vez, recebeu o suporte e o carinho que lhe pertencem por direito, vindos de todos os quadrantes da sociedade, através de pessoas altamente louváveis, pessoas com “P” maiúsculo - profissionais de saúde ou não – que se recusaram a vê-la morrer, e que envidaram os seus melhores esforços para salvá-la e ajudá-la, de acordo com a sua consciência e humanidade. E que foram excomungados por isso.
Falo de uma menininha continuamente estuprada desde os seis anos de idade. Primeiro pelo seu padrasto, um tarado contumaz que, segundo a imprensa, já violentava habitualmente também uma outra criança mais velha e com problemas mentais. E, agora, novamente estuprada, por todos aqueles que tentam negar-lhe uma última hipótese de ser feliz e de levar a vida normal que uma “mamãe” de nove anos não poderia levar nunca. Aqueles que são contra a intervenção cirúrgica – que resultou num aborto – capaz de salvar-lhe a vida e dar-lhe o anonimato necessário a que tenha uma hipótese mínima de seguir vivendo, e de esquecer o tanto que já sofreu.
Falo duma menina a quem a Igreja Católica só não excomungou por ser tão criança. Mas que condenou sem qualquer hesitação, defendendo que a deixassem grávida para que a natureza seguisse o seu curso - caso esse, em que ela morreria de forma natural. Entenda-se: - Deixar morrer, pode.
Falo dessa menina, e dos embriões daquilo que um dia seriam gêmeos, nela inseminados á bruta, á força, em estupro, por um animal. Uma criatura tão aquém da condição humana que, a essa criatura, a Igreja Católica nem vê necessidade de excomungar. Seja automaticamente, ou não. Isto, simplesmente, porque a Igreja Católica não reconhece ao estupro importância suficiente para que se justifique excomungar seja quem for. E talvez seja essa, simplesmente, a explicação para tantos escândalos com padres pedófilos, mesmo contando apenas aqueles que a Igreja não conseguiu abafar.
Falo duma menina. Nascida com o sexo feminino para, num dia ainda tão longe, ser mulher. Mulher. O sexo que a Igreja Católica sempre discriminou, e do qual se mantém tão afastada há mais de dois mil anos. Nascida com o sexo perigoso, aquele que a Igreja procura manter afastado dos seus padres, proibindo-lhes o matrimônio e levando-os a viver uma vida anormal, contra-natura e desenquadrada da realidade quotidiana, impedindo-os de conhecer na pele a vida real dos seus rebanhos.
Falo duma menina, nascida fazendo parte desse sexo menor, subserviente. Do qual provém uma imensa mão de obra, transbordante de amor e gratuita, que a Igreja parece só reconhecer por causa da importância que tem efetivamente o seu trabalho voluntário. Trabalho que é realizado por uma multidão enorme de “servas” diligentes, anônimas e ignoradas e que tantas vezes é usado apenas em prol do conforto daqueles que arrogantemente, luzidios, faiscantes de anéis e exibindo no peito pesados crucifixos de ouro, se colocam na posição de terem autoridade para interpretarem os desígnios de Deus, por quem falam como se fossem a voz d’Ele. Excomungando, como se o fizessem por Ele, quem se atrever a praticar aquilo que é a Sua mensagem de fraternidade, de perdão, de inclusão no Seu mundo de amor.
Falo de uma menina, inocente e emblemática, que tocou profundamente o coração das pessoas e as suas sensibilidades, e que, na sua fragilidade, ajudou a expor o desajuste gigantesco que existe entre essa Igreja e a realidade. As contradições dessa Igreja, que apregoa paz e amor, mas que condena friamente á morte, debaixo dum sofrimento horrível. Nos dias hoje, com a mesma serenidade e em nome do mesmo Deus que, no passado, evocava para lançar ás fogueiras da chamada “Santa” Inquisição quem lhe aprouvesse, inocente ou não. Alguém sabe quando acabou, essa “Santa” Inquisição?
Falo duma menina, uma criança nova demais para entender as contorções lingüísticas, os maneirismos, e os artifícios com que, a cada novo dia e perante o gigantesco repúdio da sociedade, aqueles que a excomungaram tentam agora minimizar o seu gesto, tentando mostrá-lo como quase automático e quase impessoal. Não é. É aberrante. Feio e mau. E também aproveitador e oportunista, por ter tentado usar a inocência duma criança para estabelecer um exemplo. E sobretudo desolador, pelo menos para aqueles que não queriam acreditar na deterioração e omissão, cada vez mais claramente visíveis, duma Igreja subjugada por correntes de negociadores, duros e oportunistas.
Falo duma menina. Não de dogmas, regras, interpretações eclesiásticas, ou excomunhões absurdas. De uma menina, uma vida humana real, já existente. Concreta e imensamente sofrida. Capaz de fazer com que as pessoas, apesar da Fé que possam ter, se revoltem e façam aquilo que já é prática comum, cada vez mais, a cada dia que passa: - se afastem. Com isso excomungam, assim, no verdadeiro sentido do termo, aqueles dinossauros privilegiados e gordos que aparentam representar a Igreja, mas por certo não representam o Deus de que ela fala. Claramente, eu já os excomunguei. Com esses, não quero comungar nada. Só distância.
Eu falo duma menina. Entenderam ?
Março de 2009