O Santo Ofício de Nossos Dias

Relações eclesiásticas: o Santo Ofício leva à intolerância; a intolerância leva a procedimentos abusivos como a excomunhão, embora, a rigor, de eficácia questionável.

Há poucos dias, durante o Carnaval, dois albergues na Lapa foram assaltados. (Ou não sei se o mesmo foi assaltado duas vezes.) Levaram roupas e demais pertences pessoais dos hóspedes, a maioria vindos do exterior. Logo após o impacto inicial das ações perpetradas contra as duas pousadas próximas (ou a mesma), curiosamente as autoridades passaram a se preocupar mais com as questões envolvendo o licenciamento dos albergues do que com a situação em que se encontravam seus hóspedes, sem documentos, dinheiro, roupas, passaportes, etc. Não me lembro de os ladrões terem sido presos.

Paralelismo, ainda que meio transverso: uma padre, agora, vem e excomunga médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, clínica, instrumentos cirúrgicos, gaze, etc. e a mãe de uma menina de 9 anos por terem concorrido para a interrupção da gravidez da garota, que deixou assim de dar luz a dois gêmeos. Tendo a gravidez referida sido provocada por estupro, levado a efeito pelo padrasto da garota. Curiosamente o padre – papa, arcebispo, frade ou o diabo que o carregue – não excomungou o padrasto. Para ele o estupro seria um crime de menor gravidade que o aborto.

As declarações do médico responsável pelo aborto ressaltam as intercorrências a que estaria submetida a menina e que poderiam levar à sua morte, tais como graves alterações da pressão sanguínea ou arterial, deformações uterinas sem chance de serem suportadas pela menina, etc. Mas a mais contundente e sensata declaração do doutor diz respeito à posição que a Igreja assumiu ao longo de todos esses séculos e que nada tem a ver com o que Jesus ensinou. É quando ele diz, de forma muito simples e direta, que “minha tristeza se dá porque a Igreja poderia levar para o lado da fraternidade, mas leva para o lado do conflito”. O médico revela muito mais sensibilidade que os eclesiásticos que passam a vida toda rezando. E continua, nos lembrando que “não é esta a Igreja que a gente gosta, que o povo quer. O povo quer uma Igreja de perdão, amor e misericórdia”.

A Igreja de hoje é exatamente a que existiu no tempo do Santo Ofício, das inúmeras atrocidades cometidas contra os cidadãos em nome da Santa Inquisição.

A excomunhão da mãe, do corpo clínico e das pessoas envolvidas no aborto a que foi submetida a menina em questão é mais uma ofensa da Igreja às pessoas, inteiramente comparável aos procedimentos odiosos da Idade Média.

Vemos, portanto, que a Igreja do homem pouco mudou. E que inexoravelmente a Igreja de Nosso Senhor está lá no céu. Infelizmente, bem distante da gente.

Rio, 06/03/2009

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 07/03/2009
Código do texto: T1473658
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