Vencendo o Medo
Quem tem medo de baratas? Há os ratos, as lagartixas, as aranhas... Mas penso que a mais temida entre a maioria são as baratas. Um misto de temor e repugnância, mas dizemos medo.
Até os meus sete anos de idade não tinha medo das 'cascudas', e ficava admirada com meu avô que as matava com golpes certeiros bem na cabeça com um lápis. Até então, não sentia nenhum tipo de repulsa por insetos.
Certa vez estava na escola onde cursava o primeiro ano do primário e mal sabia que aquele dia ficaria marcado em minha memória. A classe era umas das que pertenciam a um enorme galpão de madeira que lembravam casas sobre palafitas, suspensas do chão com 'pés' de madeira. Atrás havia uma quadra de basquete a céu aberto. Enfrente uma enorme escadaria nos separava de um enorme prédio com suas escadarias com corrimão largo em mármore, mesas, cadeiras e salas ainda com cheiro de novas e suas vidraças limpas.
Naquele tempo, o militarismo regia nosso país e o autoritarismo era severamente aplicado nas escolas. Para falar com a professora, ir ao banheiro, usar a única lixeira da sala, beber água, falar, levantar, para tudo, era preciso levantar a mão e esperar com o braço estendido bem alto na esperança de logo ser notado pela professora debruçada sobre a mesa, absorvida num monte de papel.
Depois de muito tempo com o braço erguido, recebi permissão para me levantar e ir a lixeira apontar o lápis. As regras da escola estipulavam ter mais de um no estojo de madeira, e algumas vezes nem era preciso apontar um lápis, pois já havia outro pronto para ser usado, preparado de véspera em casa por minha mãe que se certificava como todas as outras, se todo material se encontrava em ordem. Mas, nós cansavamos de ficar tanto tempo sentados, a todo tempo sendo exigidos quanto a postura, sem falar, sem poder olhar para os lados, feitos estátuas e desse modo todo dia parecia dia de prova. Ir até a lixeira era um modo de esticar as pernas...
E estava eu na lixeira quando vi dentro dela, uma página de um livro de Ciências aberto onde eu podia ver uma gravura. Hoje quando me lembro, imagino que devo ter apontado desnecessariamente a metade do lápis, por estar com minha atenção toda voltada para aquela gravura. Era um rosto de um homem que dormia, e sobre sua face, um inseto. Ali de pé, fingindo apontar, e estando a página no fundo da lixeira, interpretei que aquele inseto era uma barata. Nunca imaginei que insetos poderiam caminhar sobre nós enquanto dormíamos. Acreditava que baratas eram insetos do mato, e que insetos domésticos eram pequenas aranhas nos cantos da casa fazendo suas teias, moscas, mariposas que queriam apenas o calor das lâmpadas e as lagartixas que eu tanto gostava. Fiquei estarrecida! Impressionada com a gravura. A professora chamou-me a atenção pela demora, e dessa vez nem senti vergonha pelos seus gritos impacientes, pois minha atenção e meus sentidos estavam contidos apenas na gravura.
Por muitas semanas, aquela imagem ficou tão gravada em minha mente, que passei a ter pesadelos constantes, sonhando com baratas em minha cama. Vez ou outra, ao abrir levemente os olhos para me virar, acreditava estar vendo uma passando enfrente aos meus olhos. Era só gritos e luzes se acendendo. A casa toda despertava e ninguém dormia enquanto não me garantisse que o cadáver da 'cascuda' estava inerte no chão. E assim por todos os anos de minha vida, fui desenvolvendo um pavor tremendo por baratas.
Quando já mocinha, não dava sossego pra ninguém. Quando eu começava com coceiras sem sentido, podia-se esperar: havia uma barata por perto. Eu subia em cima das cadeiras, sofás, mesas e passava os olhos em tudo para ver onde ela estava. E sempre a encontrava! E ai começava o escandalo: "Mata, mãe!...” "Aiii, socorrooo, uma barata!"
Os anos passaram e o quarto ao lado do meu se tornou o quarto de costura de mamãe. E ali, iam-se acumulando sacos cheios de retalhos, moldes de costura em papéis enrolados como canudos, colocados dentro de caixas de papelão, revistas de moda e mais revistas, roupas e mais roupas, e a cada vez que aumentava a clientela, aumentava aquela bagunça. E ali sempre se escondia uma barata! E quando ia dormir, eu deixava um abajur aceso, que obriguei mamãe a comprar depois que descobri que as baratas se escondem quando há luz. Mantinha minha cama afastada da parede, tapetes enrolados debaixo da porta e janelas bem fechadas. Meu quarto ficava uma estufa, mas livre de baratas. Mas, quando eu descuidava, sempre aparecia uma danada. Eu estava sempre dormindo o sono dos justos quando ouvia os passos delas. Sim, baratas dão passos, e aquelas patinhas asquerosas esfregam-se umas nas outras e dão um som peculiar, quando não aquele bater de asas tremidos. E era sempre a mesma coisa: corria para acender a luz, gritava desesperadamente minha mãe, que tinha que vir e só podia dormir quando me mostrasse a prova do crime.
Quando vivi no Japão, encontrei muitas lá também, mas de um tipo cascudo diferente. Os prédios antigos em madeira, úmidos e repletos de baratas! Naquele silêncio mórbido que existia na província, só se ouvia eu berrando ao ver aquelas coisas escuras que pareciam saber que eu pretendia mata-las, me enfrentando! Sim! Elas vinham pra cima da gente e eu corria e gritava! As baratas japonesas seriam mais corajosas e mais inteligentes que as nossas?
E os anos continuaram passando... E como eu o medo crescia também!
Eu cresci, e tive um filho. Mantinha a casa impecavelmente limpa para não surgir nenhuma barata que atacasse o rostinho angelical de meu filho. Relacionei a ausência de baratas à limpeza.Hoje, ainda não sei se minha compulsão por limpeza é por ver a casa de mamãe sempre em desordem por ela trabalhar muito, ou por causa das baratas que adoram sujeira. Mas, foi nessa época que passei a limpar sem parar.
Quando fiquei grávida de meu segundo filho, minha barriga ficou o dobro do tamanho da primeira gravidez. Na última semana de gestação tive que ficar na casa de minha mãe, para meu desespero. O lar das baratas voadoras! E justamente aquela semana era de calor intenso de verão: época das baratas! O pânico se apoderava de mim. Eu me sentia um imã que as atraia, e quando as via, gritava e subia em alguém ou alguma coisa. Depois que me casei, todos os comodos da casa de mamãe tiveram destino, e o único lugar que me restou foi a sala: rota aérea das baratas. Conclusão: ninguém dormia!
Numa madrugada enfim, estava eu entrando na sala quando ouvi aquelas asinhas tremerem: sim, era ela! Senti quando pousou nas minhas costas e eu gritava, pulava e arrancava as roupas. (não ri que a coisa era séria). Logo depois que encontraram a sujeita, minha bolsa estourou e começaram as contrações.
Eu fui para o hospital com aquela dor toda, pensando na desgraçada que vôo pra cima de mim. Cheguei no hospital e pensava nela. Só não pensei na hora do parto e enquanto estava no hospital: limpo daquele jeito não havia baratas.
No dia da alta, mamãe perguntou-me se queria ir para sua casa ao que ela ouviu um sonoro 'não'!
Os anos passaram, as crianças iam crescendo, meu cuidado para que os insetos comedores de face se mantivessem longe, frequente, até que um dia me dei conta de que estava passando meu medo para as crianças. Vivemos num bairro de subúrbio... A razão de haver tantas baratas surgindo na casa de mamãe é o longo córrego a céu aberto uma rua abaixo a dela, e que está ali até hoje. Eu moro no mesmo bairro ruas acima. Minha rua é bem arborizada, há terrenos baldios, mato, e meu jardim. Quando chegava o verão seguia eu ao mercado comprar inseticidas aos montes. Quando uma barata surgia, era eu e as crianças em esteria, e ninguém para nos salvar. Jogava várias vezes o veneno, e ficavamos por cima das cadeiras ou trancados dentro de um quarto até que ela morresse. Nossa salvação foi quando nossos gatos começaram a matar as baratas, e quando faziam, comemoravamos a beça. Mas, com isso, os gatos passaram a matar também as lagartixas de quem eu era fã por saber que elas comiam as baratas.
Certa vez, ao ver o estado das crianças correndo apavoradas, vi que precisava tomar uma atitude. É horrível ter medo ou pavor de algo, e não queria vê-los crescendo como eu. Então, quando aparecia nosso inimigo número um, eu tentava manter a calma, por eles. Para vencer o medo, visualizava um problema ou um tipo de pessoa que não gostava para ter coragem de ir e mata-la. Mesmo assim, as crianças viam o medo em mim, e continuavam com medo.
Eu me esforçava, e dizia a eles que tinha muito medo, mas que iria vencer esse medo todo para protegê-los. E com as maneiras mais estranhas eu tentava enfrentar. Foi quando em uma noite de muito calor descobri como vencer o medo. Através da janela enorme toda aberta veio uma barata voando e pousou perto de onde dormia meu filho. Aquela gravura na lixeira me veio à mente. Se eu não fizesse algo, ela poderia ir nele. Se eu não fizesse algo aquilo sempre se repetiria. Peguei o chinelo, olhei para meu filho e fui com a cara, a coragem e a raiva. Determinada eu acertei em cheio: na barata!
Teria que vencer o medo para mostrar aos meus filhos que eu sou maior que aquele inseto e que mesmo com medo podemos ser corajosos: o importante é enfrentar, e não ficar inerte. E em todas as vezes que foi necessário, eu enfrentei. E comigo, meus filhos foram percebendo que o medo é apenas um alerta que exigia mais cuidado, não um aviso para correr! Que se pode ter coragem, mesmo sentindo medo. E que quando precisamos defender ou cuidar de alguém, mesmo com medo, vencemos qualquer coisa e vamos além de nossas expectativas.O medo pode nos fazer correr em direção oposta, ou nos deixar imóveis: as duas reações resultam em fracasso. Mas, quando mesmo com medo, reagimos e seguimos enfrente, vencemos duplamente.
Hoje, nem eu e nem meus filhos temos mais medo de baratas, apenas nojo. E quanto à gravura? Encontrei-a de novo num livro antigo. Não era uma barata naquele rosto: era um Barbeiro.
São Paulo, 07 de Março de 2009.
Com amor para Lucas, Matheus e Rubens.
[Não é feio sentir medo... É bom pra si mesmo admitir. Não há problema algum em sentir medo... O problema está quando o medo nos domina e nos paraliza. - Shimada]