Do que elas são capazes

Do que elas são capazes

suzabarbi@hotmail.com

Acorda depois de um final de semana totalmente gourmet.

Rolou de tudo.

No cardápio, claro.

Incluindo muito espumante e vinho verde, acompanhados de uma deliciosa pasta ao molho de gorgonzola.

Isso mesmo.

Gorgonzola!

Banhado ao creme de leite (sem ser o light).

Ainda na cama, pensa que não seguiu os conselhos da mãe: repetir não é mais um elogio à cozinheira (no caso, cozinheiro).

Bateu dois pratos muito bem servidos daquele pecado e para dar o tiro de misericórdia mandou ver um “Petit Gateâu”.

Só não lambeu o restinho do sorvete de creme que ficou na taça em consideração a tanto dinheiro gasto na sua educação.

Ainda na cama, ao lembrar do jantar, cobre a cabeça com o travesseiro e pensa em se enforcar.

Mas o despertador é desumano.

Não quer nem saber.

Toca a sirene e ela da cama.

Pensa na balança do banheiro e resolve a escovar os dentes no tanque.

De boné, entra no banho (a aba serve para esconder a balança dos seus olhos).

Pelo vidro do box, como uma exímia arremessadora, atira o boné que cai bem em cima da dita cuja.

Ufa! Está livre da danada.

Banho tomado, hora da chapinha.

A primeira mecha de cabelo vai junto com a orelha para dentro da prancha fervendo.

Com um grito, quase arranca o couro cabeludo e a orelha fora.

O aparelho cai em cima da pia, rachando-a ao meio.

Com a orelha queimando, prancha estragada, pia rachada, sentindo-se a mulher bola, jura ficar a pão e água até ser a cover da Gisele Bündchen.

De cabelo crespo, vai para o serviço chorando de dor na orelha.

Por volta das 10 da manhã, o estômago começa a roncar.

Ela tenta não ligar.

Ele se esbaldou na véspera.

Hora de ficar quietinho.

E como um bichinho domesticado, ela o coloca fora do alcance das suas atenções.

Afinal, a orelha já é um tormento de se aguentar.

Às 11, o bichinho torna-se um cão raivoso.

Ela também.

Pior: com a orelha em chamas!

E aí vem a grande idéia: deixar o serviço de lado e olhar seus e-mails.

Caixa lo-ta-da!

Abre o primeiro: um texto dizendo que homem não liga para as turbinadas.

Mulher de verdade tem que ter umas gordurinhas.

Aquelas que ficam antenadas demais ao corpo nunca irão desfrutar um chope e compartilhar um belo prato de fritas com seus amados!

Abaixo as turbinadas!

Ela, contrariada (e dolorida), toma mais um copão d’água e tenta enganar seu ruidoso estômago.

Então mulher que é mulher tem que dividir o prato de batata frita com o companheiro???

Tá bom!

Passa ao segundo e-mail, morrendo de fome e com a idéia fixa em Van Gogh.

E o quê o e-mail diz?

Que Dorival Caymmy viveu 90 anos dormindo a maior parte do dia e que nunca fez um exercício sequer. E mais: fumou e bebeu a vida inteira.

Parou aí?

Não!

Que a baleia bebe só água, come só peixe, nada o dia inteiro e é GORDA!

Ela, nervosa, coça a orelha num habitual tique nervoso.

Cai desmaiada no chão.

Quando acorda, está num posto médico com alguém escovando seu cabelo.

Maldito cabelo!

A prancha da chapinha tinha achatado sua orelha junto com o cabelo e o que se viu ali foi uma queimadura cheia de cabelinhos esturricados.

Depois de uma sessão de desinflamação, ela sai do consultório tonta e parecendo um Mickey Mouse.

Na orelha, um curativo e-nor-me.

Vai para casa ver se as coisas melhoram.

Pioram.

O computador indica mensagens recebidas.

Ao acessar, a grande surpresa: aquele com quem ela vinha conversando virtualmente, advogado paulista, está na cidade e quer conhecê-la.

Ficará apenas um dia e a está convidando para um encontro num shopping.

O quê fazer?

Desorientada, pensa em tudo.

Não pode conhecer tão promissor pretendente de cabelo crespo e orelha queimada.

E como não fazê-lo?

Onde colocar tanta curiosidade?

Com o telefone na orelha boa, liga para a amiga.

A situação merece uma reunião.

Prós e contras são pesados, mas infelizmente os contras são visivelmente mais fortes.

E aí a amiga tem uma idéia.

Se ela quer ver o advogado paulista, nem que seja apenas para matar a curiosidade, pode ir sem que ele a veja.

Três horas depois, uma mulher vestida com uma burca entra na praça de alimentação do shopping, acompanhada de uma outra, essa, nada árabe: mini saia e tênis All Star.

Não só o advogado paulista, mas todo o shopping para a fim de olhar a cena.

Um, menos avisado, deixa cair a bandeja com prato, garfo, faca e refrigerante.

Escondida atrás daquela coisa, ela pede um suco.

Só quando um garçom incrédulo lhe serve a laranjada é que ela se dá conta de que não sabe como tomar aquilo dentro de uma burca.

Passa o suco à amiga e põe o olho no advogado que tenta disfarçar, mas não consegue desviar a atenção daquela árabe.

Não só ele, mas toda a praça de alimentação, incluindo aqueles que por ali atravessam.

Quando duas crianças chegam para pedir autógrafo, é demais para ela.

Imediatamente, levantam-se e vão embora, deixando para trás uma praça de alimentação cheia de assunto.

Ao chegar em casa, morrendo de calor, vê que tem mensagens no computador.

Era ele se lamentando.

Ela tinha perdido a cena de uma autêntica árabe, com burca e tudo, que apareceu no shopping.