Dorival Caymmi, me dê teu mar!

Numa segunda-feira excessivamente quente de março, abro minha janela e lanço meu olhar cansado sobre a paisagem. Na minha rua não acontece absolutamente nada: o sol fatigado está a pino sobre os telhados, sobre o asfalto poderíamos fritar alguns ovos, e nenhum camelô ousaria passar, gritando seus pregões pela rua.

O meu cachorrinho, estirado sobre a cama, boceja preguiçosamente. E toda natureza parece conspirar em comunhão para o meu tédio. Até as nuvens se deslocam tristes e monótonas nesse céu tomado de um azul pálido e modorrento; as plantinhas desanimadas da minha vizinha murcham sobre o vaso, e sequer ouço o pio de um passarinho. Um silêncio absurdo habita todas as ruas, se arrasta pelos telhados, expropria todas as casas: apenas o eletricista da esquina continua a bater furiosamente o seu martelo. Mas nem a batida do seu martelo é capaz de romper o tédio que se estirou sobre os telhados do meu bairro.

O tédio é absoluto em pleno o meio-dia.

Posso ouvir na casa do Ceará, vizinho preguiçoso do lado, o ranger da rede balançando pra lá e pra cá. O Ceará é um desses sujeitos que nem trabalhando disfarçam sua enorme preguiça. Ao vê-lo me lembro do compositor e cantor baiano Dorival Caymmi. Dorival era um gênio na dificílima arte de bocejar. Dono de uma preguiça monumental; acabou por superar a própria condição humana se tornando o símbolo de todo um mito baiano. Num livro biográfico descubro que compôs pouco mais de cem músicas ao longo de toda a vida – numa média estressante de duas músicas por ano. Caymmi, mesmo sem querer, acabava confirmando o mito de que todo baiano é um ser preguiçoso por natureza.

E como tenho inveja do Caymmi!

Como não tenho nada a fazer mesmo, me ponho a imaginar aquela sua rotina preguiçosa: deitado numa rede, à sombra de agradáveis palmeiras e frondosos coqueirais, agüinha de coco, cachaça de rolha, violão ao alcance da mão (para evitar a fadiga de ter que descer e pegá-lo), uma morena bonita pra namorar, tudo isso diante de uma praia lindíssima. Ora, para quê mais? Temos que suportar a previsibilidade da vida e torná-la mais suportável. Se possível até felizes. Talvez o segredo para a felicidade seja justamente esse: não esperar nada da vida, afinal de contas, quê que a vida espera de nós? Embora deva confessar que, no fundo, nem eu levo a sério essa filosofia. Oxalá que ninguém concorde comigo!

A única coisa que sei é que o poetinha vagabundo, Vinicius de Moraes, tomado de inveja pelo Caymmi, acabou levando a mesma vida. Num dos poucos momentos de disposição criou ao lado de Toquinho o famosíssimo samba-canção "Tarde em Itapoã". Nesse belo sambinha está registrada de maneira lírica a deliciosa preguiça baiana.

Mas pouparei esforços nessa tarde calorenta: não estou com grande ânimo para elaborar poderosos argumentos, muito menos defender pontos de vista. Mas estou inclinado a professar que a fórmula mais modesta da felicidade é a de “nada esperar”. Ouvi certa vez, não sei se com essas palavras (estou com uma baita de uma preguiça de me lembrar...) que a angústia do homem reside no fato dele imaginar. Não estou querendo com isso me proclamar como o percussor da filosofia da preguiça e nem que nos acomodemos burguesamente diante da miséria: lutemos por uma vida mais digna e mais justa para todos nós. Façamos desse mundo um imenso coqueiral onde possamos todos compartilhar nossas redes! Sim, eu só queria que esse mundo fosse um enorme coqueiral onde poderíamos todos compor nossos sambinhas na paz de Nosso Senhor, sem os aborrecimentos desnecessários dessa nossa vida urbana, chatérrima e consumista.

Digamos que sou apenas o modesto tradutor de uma filosofia de vida. Sim, estou apenas a traduzir aquilo que o Dorival Caymmi não teve coragem (por preguiça) de esmiuçar teoricamente.

Poderia compor um sambinha em homenagem a ele, onde exaltaria sua infinita preguiça... Mas é uma pena que minha paisagem seja tão desalentadora! Se lanço meu olhar pela janela, em busca de inspiração, esse mesmo olhar se detém a menos de oito metros na casa do vizinho defronte. Diferente da maioria de nossas favelas que, do alto de seus morros, se dão ao luxo de contemplar belíssimas paisagens no horizonte, no subúrbio temos apenas a casa do vizinho na dianteira, antenas e mais antenas de tevê rasgando os céus. Estamos carentes de belezas.

Aqui, no subúrbio, qualquer possibilidade de evasão dos sentidos se torna improvável. Diferente das favelas: estamos diante da própria miséria em espelho. Horizontalmente plantados nesse enorme berço de casas térreas e deploráveis. Sim, nesse mundo de tantas desigualdades, nem a beleza é democraticamente compartilhada! Até a bela morena está em falta por aqui.

E como sofro por imaginar um mundo mais tranqüilo, mundo onde além de água e comida, a beleza pode ser finalmente compartilhada! Enquanto não conquistamos esse imenso coqueiral, me ponho a tocar meu violão, na esperança de que um dia terei dignas paisagens para compor pelo menos (no mínimo!) dois sambinhas por ano...

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 02/03/2009
Reeditado em 20/09/2010
Código do texto: T1465931
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