Cantigas de ontem
A meninada se reunia com alegria e disposição. Brancos, pretos, índios, amarelos, e os mestiços. Todos só tinham um propósito: brincar. Após as aulas, à noite antes de dormir, nos finais de semana, aos feriados, podíamos observar um grupo reunido, planejando a próxima rodada de cantigas; e no meio sempre havia uma líder. Era ela que puxava a música e fazia a escolha das cantigas.
¨Seu Francisco entrou na roda,
Tocando seu violão, seu violão.
Ali vem seu delegado, e a polícia,
Com seu bordão:
¨Tá preso!¨
Refrão
Quando ele vem se requebrando,
parece um boneco se desmanchando¨.
Nessa hora, o delegado aparecia, os policiais atrás fazendo cara de bravo, e a meninada fechava o círculo pra não deixar o delegado ver Seu Francisco, que a um sinal, já estava enroladinho no chão.
Não dava tempo para enjoar, porque logo a líder puxava a próxima:
¨Tenho um pássaro preto, araruta,
Que veio lá de Natal,araruta.
Xô, xô, xô, araruta!
Não deixa ninguém te pegar, araruta¨!
Seguíamos a brincadeira já cantando outra:
¨Dona cutia tá com dor de dente,
De tanto, tanto comer doce quente (2X).
Dona senhora, você sabe quem tem dinheiro,
Pra comprar cutia?(2x)
Lá na casa da minha tia, tem tanto bicho, mas não tem cutia (2x)¨.
Não sabíamos o que era cutia, mas isso não nos impedia de nos divertirmos por horas a fio.
¨Terezinha de Jesus deu uma queda foi ao chão.
Acudiram três cavaleiros, todos três chapéu na mão.
O primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão,
O terceiro foi aquele que a Tereza deu a mão.
Da laranja eu quero um bagre, do limão um pedacinho,
Da menina mais bonita, quero um beijo e um abraço¨.
Porém tinha uma cantiga que assim que começamos a cantar, houve uma resistência tremenda, e tivemos que deixá-la de lado.
A resistência partia dos adultos. E quando diziam não, era não.
A letra era assim:
¨Estou amando loucamente uma menina que perdeu dois dentes.
Como é o nome dela? Cabelo de Bombril, de arear panela!
Ela é toda torta, tem pés de elefante. É cega como uma porta.
Seu nariz é de tucano. Saiam da frente que ela está passando!¨
Professores e pais deram um basta, e tivemos de deixar aquela música tão horrível. Hoje percebo que era uma música que fazia apologia ao preconceito e gerava violência. Muitas vezes erramos, e é nessa hora que é preciso uma voz para orientar.
Naquela época já havia professores que condenavam aquela musica do ¨Atirei o pau no gato¨. E nos ensinavam que nem tudo era pra ser imitado só porque a maioria estava fazendo.Tínhamos que saber fazer escolhas, e essa lição tentei aplicá-la à minha vida. Não acertei sempre, porém continuo colocando em prática àquilo que ouvi da boca da minha professora Celeste: ¨Crianças, a gente tem massinha é pra pensar¨.