A contadora de história

Quando tive contato pela primeira vez com aquela senhora percebi que ali teria uma fonte inesgotável de alegria e novas descobertas. É que Dona Neném sabia contar histórias como ninguém, e mais eram todas verídicas. Quando eu chegava, ela logo demonstrava alegria por ter um ouvido atento às suas ¨mesmas histórias que ninguém mais queria ouvir¨.

_Já lhe contei essa? Perguntava preocupada, não queria ser vista como uma velha chata e repetitiva.

_Não, a senhora ainda não me contou. Respondia com sinceridade, pois via naquela pergunta um apelo.

Os velhos se sentem rejeitados, e às vezes lhes passamos, sem querer, uma mensagem que é mais ou menos essa: ¨Não há lugar no meu mundo para você¨.

A demora era só o tempo de tomar fôlego, dar uma risadinha, me olhar com aqueles olhos embaçados, e começar:

A história da minha sobrinha, aquela que morreu eletro...ele..cutada. Ah, a senhora nem imagina como ficamos abalados! Não sei não, era uma minina loura, parecia uma boneca¨¨.

Era preciso prestar bastante atenção, e quando eu não entendia o que ela estava dizendo, pedia licença, a interrompia porque muitas vezes misturava uma história dentro da outra.

¨Pois, é a minina tava colocando os bichinhos pra comer.Eram as criações da minha mãe, e como a minina sempre fazia passou debaixo daqueles fios, e aconteceu aquela tragédia! Dona foi uma calamidade! A minina ficou toda queimadinha¨.

-Ô dona Neném, e como foi que vocês descobriram?

_Foi minha irmã Zuzinha, quem teve a infilicidade de encontrar a minina,e a senhora não sabe, ela a minha irmã, se arriscou porque quando ela viu a nossa bonequinha caída no chão, toda queimada, e desmaiada, não pensou duas vezes, foi pra cima, pegou a minina nos braçus e saiu correndu a procura de socorro.¨

Dona Neném quando falava o erre, dobrava a língua fazendo uma força daquelas. A palavra era pronunciada mais ou menos assim: _arriscou virava ariscou. Correndo virava corendo¨.

_Mas ela não levou nenhum choque, dona Neném? Perguntei querendo saber como a sua irmã tinha conseguido no ímpeto de salvar sua sobrinha, não ficar presa ou até vir a perecer.

Ela logo me adiantou:

_Não. Foi Deus,viu? Porque todo mundo sabe que esse negócio de energia é muitu pirigoso,mas ela quando pegou a minina, a rede já tava disligada. Diz o pessual que o choque foi tão grande que disligou tudo.

Dona Neném baixou a cabeça comovida. As lágrimas correndo pelo seu rosto cheio de rugas. Eu que pra chorar não preciso levar uma surra, logo me vejo passando as mãos pelos olhos; sinto pena da menina que perdeu a vida tão nova e acredito,que nem ela sabia o que lhe acontecia naquele momento.

Pensativa dona Neném continua. Percebo que na sua mente cansada as imagens voltam como se revisse tudo numa tela. Tento fazê-la mudar de assunto, mas não me dar ouvido.

_Ficou toda queimadinha. Dizem qui era pro governo ter indenizadu a famiía, mas pobri num sabe de nada mesmu, e até hoji minha irmã perdeu a saúde e ninguém consegui esquecer não.

_Dona Neném, e a história do brabo de Caramiri?

_Deixe eu terminar essa que já lhe conto.

Não tinha jeito, ela insistia, embora vendo que sofria, respeitei sua vontade de falar.

_ Zuzinha correu um bucadu com a minina no braçu, mas quandi encontrou um carru, e colocou pra levar pru posto, já percebeu qui ela tava morta. Pele queimada; cabelo loirinho, loirinho, todo queimado.

Balançou um pouco a cadeira de balanço. Os pés mal batendo no chão. Pés pequenos, todo rachado, unhas quebradas e manchadas; pés de quem viveu o tempo todo em contato com a terra.

Balançando a cabeça, concluiu sua história:

_Sabe ninguém ficou cum raiva de Deus, não. Ele não teve culpa di nada. Nós é que temos culpa. Mexemos em tudu e às vezes queremus ser mais du qui Ele. E num pode, né?

Confirmo suas palavras. Ela continua olhando-me de uma maneira que parecia ler minha inquietação em relação à vida:

_Eu já vivi muitu, e já vi muita coisa nesse mundo. A gente num se acustuma, mas aprendi a viver cum a dor.Tem qui olhar é pra frenti e siguir sempre, porque se parar, morri!

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 02/03/2009
Código do texto: T1465784
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