O UISQUE E O SAPATO

Existe um excelente programa no canal Futura, chamado O Bom Jeitinho Brasileiro que revela o lado peculiar do nosso povo de lidar com as escassas oportunidades da vida com criatividade, engenhosidade e bom humor. São casos dos mais intrigantes e geniais malabarismos que enfrentam nossos compatriotas na luta digna pela sobrevivência e pela sobrevivência digna. Sem as malandragens perniciosas de nossos colarinhos brancos e nem o imperativo astuto do “levar vantagem em tudo, certo?”. Acho não menos genial quem teve a idéia de transformar essa exortação em um programa, pois não é que convivemos a todos os instantes com situações desse tipo e nem nos damos conta?

Vou contar então um caso de duplo desaperto para solução de problemas que à primeira vista, desencoraja a quem os enfrenta pela absoluta falta de recursos ou pela urgência de seu desfecho. Foi numa das repúblicas em que morava junto com mais dez companheiros estudantes, onde a maior abundância era a de carência, menos de laços fraternos. O Joaquim Primo tinha pretensões de cursar a medicina e custeava seus estudos preparatórios com a ajuda de um emprego meia-boca, desses não muito raros em que o patrão cobra muita dedicação, presença e competência, mas não retribui na mesma moeda. Ganhava pouco, como os outros todos da casa que possuíam alguma renda para ajudar aos pais na manutenção do sonho do ver os filhos formados. Possuía ele um litro de uísque, presenteado que fora em uma confraternização de final de ano em seu trabalho e o guardava com zelo de vigilante. Nossos hábitos e disponibilidades financeiras republicanas permitiam, quando muito uma cervejinha raramente , assim mesmo, quando o pai de algum de nós vinha visitar e deixava um dinheirinho extra, para aquelas precisões mais urgentes. Ou ainda quando aparecia um convite para festa do tipo boca livre. O uísque era um luxo longe da imaginação e do paladar. Só mesmo para ser olhado e cuidado como enfeite da casa sem mais adornos dignos de serem comentados. O Zezinho era muito vaidoso e gostava dum negocinho, que agora não sei se era para sustentar a vaidade ou vice-versa. Vivia vendendo roupa usada para nós ou trocando peças, que repetir vestimenta não era muito de seu agrado. A venda só fazia quando precisava muito de alguns trocados e percebia que alguém gostava também de suas roupas, que eram de bom gosto, e assim lhe rendiam mais que valiam. Além disso, estudava à noite e durante o dia trabalhava num banco, onde tinha que estar com a aparência bem talhada, que banqueiro gosta de atrair cliente é pelo bolso e silhueta.

Tinham os dois um compromisso de festa de casamento. O Zezinho ia ser padrinho do seu convidado e o Primo era só convidado de outra celebração. Um não tinha presente nem dinheiro para comprar. O outro, tampouco tinha sapato de domingo para ir ao festejo. Numa conversa de cinco minutos, apareceu um princípio de solução. Digo princípio porque a negociação durou o dia inteiro. Resolveram trocar o sapato pelo uísque, que ia enfeitar um e não deixar o outro fazer feio ante o afilhado. O Zezinho gostava desses modelos mocassim e o Primo, gostando ou não, tinha pouca opção de resistência; negaria o escambo apenas se não lhe coubesse nos pés. O sapato foi devidamente lustrado para ganhar aparência de saído de loja, já que ficou bem ajustado sem precisar de enchimento com jornal ou causando manco por aperto. Já o uísque foi levado na caixa mesmo, porque papel de presente era muito caro.

josé cláudio Cacá
Enviado por josé cláudio Cacá em 01/03/2009
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