A arte e o amor
Ao abrir a porta cedo para cumprir minha mania de cumprimentar o sol, as plantas e um bem-te-vi que todos os dias canta pela manhã ao lado da janela que fica próximo onde durmo, como se estivesse me saudando, sorrindo pra mim; fui surpreendida com um bilhete colocado embaixo do portão, que dizia:
“Parabéns, não só pelo seu aniversário, mas por ter conseguido fazer com que eu percebesse que sou importante, que tenho valor e posso vencer; uma aluna que te admira e que te ama ver sempre sorrindo... Aguarde que é só o começo da surpresa, mais tarde tem mais... Abraço afetuoso!”
Confesso que fiquei curiosa pra saber quem havia me feito este mimo, mas tive dificuldade, porque tantos alunos passaram por mim, durante a trajetória da minha vida, que fica difícil saber. No entanto, seja quem for o remetente, deixou-me muito feliz pelo conteúdo que li.
De repente recebo a visita de algumas lembranças que contextualizaram a imagem que se reflete em minha pessoa nos dias atuais. A lembrança levou-me a sala de aula com jovens do oitavo ano do Ensino Fundamental, parece que estou lá... No dia em que fui substituir um professor do Ensino da Arte por seis meses. Ah! Não poderia esquecer, quando fui entrando na sala, percebi a rejeição ao escutar quando uma garota que tinha aproximadamente minha idade, falou:
_Vou logo me preparar pra dormir, porque pense numa aula choca é a de Artes, ninguém merece!
Não respondi nada, cumprimentei a turma, mas era tanto barulho que ninguém respondeu. Então, peguei o pincel escrevi na lousa o meu nome completo e o que estava fazendo ali, cruzei os braços e os olhei firmemente.Finalmente, deram-me atenção.Foi quando lancei um desafio pra eles.Falei que se em uma semana não gostassem da forma como iria trabalhar a disciplina, não retornaria a sala.Deixei claro que gostaria de ouvi-los e conhecer a diversidade existente entre eles, e trabalhar arte como construção, apresentei minha proposta de trabalho com música e teatro durante os seis meses, e ficaram entusiasmados.
Construíram duas peças: “A primeira vez de um adolescente” e “A mão que me segurou”. Durante as aulas ensaiavam, se divertiam, se empolgavam sem perceber que estavam desenvolvendo múltiplas inteligências através da oralidade, expressão facial, corporal, temporal, espacial, a capacidade criadora de textos, a intervenção textual, a socialização, formação de conceitos, mudança de comportamento e mentalidade, a auto- estima...Enfim, o diálogo, a leitura fluente, a interpretação e incorporação de personagem através de representações cênicas.Isso me deixou mais realizada que eles.
Quanto ao trabalho com a música, também foi enriquecedor, fizemos composições coletivas, trabalhamos sobre suas notas, fizemos a culminância do projeto, com música ao vivo tocada pelos próprios alunos, com violão, teclado, bateria, tudo adquirido por aqueles jovens adolescentes. Nossa!Quanta alegria via nos olhos daqueles garotos enquanto cantavam, tocavam, dançavam... Muito gratificante isso, demais!
Entretanto, só teve um problema: A turma não queria aceitar mais o professor efetivo da sala. Isso me causou um mal-estar, foi preciso o professor prometer que iria mudar sua metodologia e tive que me tornar parceira neste processo.
Ora, mas por que será que recordo estas coisas?!Não é difícil saber a resposta. Simplesmente, por ser a sala de aula, um dos cenários em que foi elencado grande parte do que protagonizou minha vida, que contribuiu para meu crescimento, minha pessoalidade.
Meu melhor presente são os bons frutos colhidos por anos de dedicação, os abraços, cada palavra amorosa, os e-mails, os recados, o abrigo do olhar, amo tudo isso. Não devo reclamar da vida, tenho mais do que mereço. Isso sem contar com os sonhos que realizei os momentos de prazer que vivi, as descobertas que fiz, as asas que criei, as conquistas alcançadas, minha profissão que adoro, os amigos que ganhei, minhas duas bênçãos (meus filhos), e muitas outras coisas que alegram minha alma, muito embora em alguns momentos, haja uma lacuna vazia em mim, uma ausência ou sei lá o quê...Que se torna preenchida muitas vezes por pontilhados de amor, emoções superáveis.
Hoje, com quase quarenta anos vividos agradeço a Deus por tudo; pelos bons sabores que senti, os dissabores que provei e aprendi, amor partilhado, pela coragem de sempre seguir, pelo rio seco que atravessei, pelo espírito jovem, o sorriso sincero, por nunca em momento algum ter tido medo de me entregar a um amor, por acreditar que o outro existe em mim, que sou amada, querida e necessária à felicidade de alguém.