OUTRAS FACES.



Há poucos anos, em um dos meus pousos em livraria, dei de cara com a bela apresentação de Correio Feminino, compilação dos textos escritos por Clarice Lispector para a página destinada  às mulheres no vespertino carioca Diário de Notícias.

Li com avidez a orelha escrita por Alberto Dines. Sentei, pedi um café e comecei a folhear o exemplar com ansiedade. Afinal, pensei, tratava-se de Clarice Lispector falando para mulheres comuns.Vi-me  nesse público e fui folheando os textos com ansiedade. 

Ao iniciar  tinha certeza de que aquele seria o livro da vez e fui surpreendida por uma Clarice que não se assemelhava em nada a imagem de grande escritora e mulher independente que eu fazia dela.

A coluna era feita por Clarice e assinada pela atriz Ilka Soares. Tratava de frivolidades e ratificava o papel secundário da mulher, que deveria se manter à sombra do seu companheiro em atitudes e discurso. Choquei-me.

A minha impressão foi apressada e injusta. Quem sou para julgar Clarice? Quem sou  para condenar uma mulher que escrevia uma coluna de jornal para se manter? Distante das donas de casa brasileiras da década de sessenta, mais distante estou  de Clarice Lispector. Avaliei mal e devolvi o livro para a pilha de onde o havia tirado.

Em seguida  adquiri  Minhas Queridas e a alma abriu-se para a intimidade afetuosa da grande escritora em cartas às irmãs, quando morava fora do Brasil. Ali  Clarice é inteira, espontânea, inquieta, generosa e vibrante. Ali, Clarice é um ser humano belissimo.

Na primeira ocasião faltou-me a percepção de que os textos do Diário da Notícia eram  escritos tão somente pelas mãos de Clarice, não por sua alma. Perdi-me em preconceitos, rigidez ,e, deixei passar a oportunidade de ver que mesmo naquelas linhas aparentemente frívolas havia a marca da sensibilidade e do talento imensurável de Clarice.

Quando escreveu sobre  sedução, por exemplo,  Clarice afirmou : “Ela não é bonita, mas... É, mas é sedutora. A beleza apenas não interessa aos homens. E nas amizades, também não é a beleza que conta. O “sex-appeal” interessa por pouco tempo, é fogo de palha. Mas a sedução prende. É coisa mágica: envolve, mesmo que não se entenda de que modo. Talvez você não seja bonita. Não tem importância. Você pode ser irresistível sem ter beleza. Depende de você, em grande parte. Esta é a primeira aulinha. Talvez você pense que não aprendeu nada de positivo. Mas aprendeu, sim. Aprendeu que ser amada não depende de beleza."

Louca por biografias e ainda sob o impacto da minissérie recente, leio Maysa - Só uma Multidão de Amores, do jornalista Lyra Neto e descubro que na mesma época,a intérprete e compositora "assinava" uma coluna no tabloíde, redigida pelo também jornalista Raul Giudicelli, que só ouvia música erudita e nada sabia sobre Maysa.Tratava-se da estratégia de Dines para salvar o vespertino dos Diários Associados que naufragava em 1960.

É com alegria que revejo meu julgamento apressado sobre a mulher Clarice Lispector, pois quanto à escritora não tenho estofo para julgar.  Descubro aliviada que o meu erro está sendo reparado.

Olharei com mais interesse as páginas que afastei. Um reparo ao meu alcance. Meu olhar desconfiado afetou  apenas a mim, uma vez que os escritos de Clarice para as colunas femininas não arranharam sua reputação. Ademais, ela vivia do que sabia fazer e fazia muito bem em qualquer estilo.

Evelyne Furtado, em 27 de fevereiro de 2009.
Evelyne Furtado
Enviado por Evelyne Furtado em 27/02/2009
Reeditado em 28/02/2009
Código do texto: T1460710
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