A ÚLTIMA CAÇADA!
Numa noite linda, batida pela luz amena de uma deslumbrante lua cheia, deixamos a cidade para levar a efeito aquela que haveria de ser a minha última caçada.
Já havíamos caminhado cerca de seis quilômetros de campo, quando se fez ouvir o primeiro acuar de um dos cães. Houve silêncio e expectativas, quebrados pela confirmação inequívoca do constante ladrar prenunciador da amarração da caça...
Todos, a um só tempo, pusemo-nos em corrida desabalada, rumo à caça, que já tardava naquela noite. Mas, para surpresa e estupefação de todos, o cão, que jamais falhara, parecia haver abandonado o local da luta para vir a nosso encontro, com aquela humildade que lhe é tão peculiar!...
Ganindo a nossos pés; abanando a cauda fina e comprida, olhava-nos de maneira estranha, como a nos querer dizer algo que não poderíamos compreender, jamais!
Mas, não haveria de ser nada. Eram, apenas, dez horas e tínhamos pela frente toda uma noite cheia de esperanças e de belezas! Cada qual reajustou sua carga e recolocou nos ombros a ferramenta que lhe competia carregar.
Nova caminhada. Novos acontecimentos semelhantes ao primeiro!... Estranha e misteriosa noite aquela!... Era inútil prosseguir.
Marcava meu relógio de bolso onze e meia da noite e nos encontrávamos a mais de nove quilômetros de distância, quando tomamos um caminho deveras conhecido, que passava por uma tapera, indo terminar em uma porteira que dava acesso à estrada principal.
É de se avaliar o cansaço de que nos achávamos possuídos, após vencermos aqueles nove ou dez quilômetros de campos, cheios de cupins, buracos e cercas de arame farpado, muitas vezes por nós ultrapassados em corrida desabalada...
Assim, antes que demandássemos aquele caminho, a oitocentos ou mil metros da estrada que nos levaria à cidade, resolvemos descansar um pouco, sob a luz da lua que já ia alta sobre nossas cabeças!...
Havia já alguns minutos que nos deixávamos estar naquela atitude de relaxamento e descanso, embevecidos ante a beleza estonteante daquela noite que jamais esqueço, quando um dos nossos companheiros ergueu-se do solo subitamente, como que tomado de uma loucura repentina e, aos gritos, numa defesa veemente às caças, precipitou-se sobre um pequeno capão de mato, fechado de caraguatás e unhas-de-gato, que o deixaram lacerado e com as vestes esfarrapadas!...
Dali, com o facão em punho, as perneiras apenas penduradas pelas correias superiores, ganhou o campo aberto, aos pulos e gesticulações, acompanhados de gritos angustiantes que faziam eco na imensidão e no silencio daquela noite cheia de mistérios!...
Entre cuidadosos e amedrontados, o seguíamos de longe, sem nada compreender daquilo que se passava!
Depois de permanecer, por vários minutos, naquela atitude de desespero e grande aflição, caminhou, a passos incertos e desequilibrados rumo à estrada, onde já o esperávamos prevenidos contra uma possível agressão de sua parte.
Daí a pouco ali estava, diante de nós, de facão em punho, roto, ofegante e exangue, aquele que seria incapaz de um gesto violento contra seus amigos e que jamais se atiraria a uma atividade extraordinária como aquela, dadas as suas condições físicas e o seu temperamento cômodo e tranqüilo.
Aproximamo-nos dele e vimos, cheios de espanto e de terror, através dos óculos que, por milagre, não lhe caíram do rosto, os olhos parados e brilhantes como o mais fino cristal!
Seria possível, Santo Deus! Teria ele perdido para sempre a razão?! E, antes que lhe disséssemos algo, ergueu-se num salto rápido e ameaçador, enquanto a lâmina do seu facão brilhava no alto, beijada pela luz branca da lua...
Movidos pelas molas destras do instinto de conservação, demos dois ou três passos para trás e, em atitude de defesa, esperamos o golpe que, felizmente, não veio.
Os saltos, porém, se repetiram e os gestos e as cenas se multiplicavam e de seus lábios, ressequidos ou queimados pela sede explodiam palavras gritantes, que se traduziam em veementes acusações contra nós os caçadores e vibrante defesa da caça.
Trementes e espavoridos, éramos, por força das circunstâncias, espectadores obrigatórios e necessários daquela cena representada, inconscientemente, por um amigo no palco imenso da natureza exuberante e bela! Exuberância marcante e aterradora! Beleza triste, tétrica, indecifrável!... Noite que ainda hoje me faz tremer ao relembrá-la e descrevê-la!
E, aquele amigo longe da razão perdido na noite negra da inconsciência e da loucura, não dava sinal de abatimento ou de fraqueza ante aqueles esforços, verdadeiramente, sobrenaturais!...
Aos poucos, porém, empurrado, talvez, pela providencia divina e seguido à distância por seus amigos e companheiros, ia abandonando aquele sítio, rumo à porteira que dava acesso à estrada.
Ali chegando, deteve-se. Transpôs a porteira e foi cair na estrada, reintegrado em si, cheio de espanto e de cansaço, porém, vazio, como vazia estivera sua alma e sua razão.
Sem nada compreender de tudo aquilo... Perdido em seu mundo interior, entre gemidos de dor e de cansaço, perguntou-nos, com palavras entrecortadas, o que se havia passado com ele! E, antes que pudéssemos dizer-lhe alguma cousa, concluiu: “E este facão desembainhado?! Estas perneiras soltas?! Esta roupa rasgada e tinta de sangue?! Por quê tudo isso?! Por quê este cansaço?! Esta dor?! Esta imensa vontade de dormir?!”.
Você se esforçou muito. Dizia um. Acha pouco correr de facão em punho, querendo pegar um tatu a unhas? Completava outro.
Mas, o companheiro, quieto e pensativo, não parecia ouvir nossas palavras!
Interpretando a razão daquele silêncio e antes que pudessem sobrevir acontecimentos novos, conseguimos persuadi-lo de que deveríamos partir de regresso à cidade.
E, assim, dobrado pelo cansaço, aniquilado ante os extraordinários esforços desenvolvidos, o conduzimos, apoiado em nossos ombros, até sua residência, numa verdadeira peregrinação de dez quilômetros de estrada, vencidos em mais de cinco horas de duríssima jornada, que marcou a etapa final daquela que foi minha última caçada.
Novembro de 1962.
Numa noite linda, batida pela luz amena de uma deslumbrante lua cheia, deixamos a cidade para levar a efeito aquela que haveria de ser a minha última caçada.
Já havíamos caminhado cerca de seis quilômetros de campo, quando se fez ouvir o primeiro acuar de um dos cães. Houve silêncio e expectativas, quebrados pela confirmação inequívoca do constante ladrar prenunciador da amarração da caça...
Todos, a um só tempo, pusemo-nos em corrida desabalada, rumo à caça, que já tardava naquela noite. Mas, para surpresa e estupefação de todos, o cão, que jamais falhara, parecia haver abandonado o local da luta para vir a nosso encontro, com aquela humildade que lhe é tão peculiar!...
Ganindo a nossos pés; abanando a cauda fina e comprida, olhava-nos de maneira estranha, como a nos querer dizer algo que não poderíamos compreender, jamais!
Mas, não haveria de ser nada. Eram, apenas, dez horas e tínhamos pela frente toda uma noite cheia de esperanças e de belezas! Cada qual reajustou sua carga e recolocou nos ombros a ferramenta que lhe competia carregar.
Nova caminhada. Novos acontecimentos semelhantes ao primeiro!... Estranha e misteriosa noite aquela!... Era inútil prosseguir.
Marcava meu relógio de bolso onze e meia da noite e nos encontrávamos a mais de nove quilômetros de distância, quando tomamos um caminho deveras conhecido, que passava por uma tapera, indo terminar em uma porteira que dava acesso à estrada principal.
É de se avaliar o cansaço de que nos achávamos possuídos, após vencermos aqueles nove ou dez quilômetros de campos, cheios de cupins, buracos e cercas de arame farpado, muitas vezes por nós ultrapassados em corrida desabalada...
Assim, antes que demandássemos aquele caminho, a oitocentos ou mil metros da estrada que nos levaria à cidade, resolvemos descansar um pouco, sob a luz da lua que já ia alta sobre nossas cabeças!...
Havia já alguns minutos que nos deixávamos estar naquela atitude de relaxamento e descanso, embevecidos ante a beleza estonteante daquela noite que jamais esqueço, quando um dos nossos companheiros ergueu-se do solo subitamente, como que tomado de uma loucura repentina e, aos gritos, numa defesa veemente às caças, precipitou-se sobre um pequeno capão de mato, fechado de caraguatás e unhas-de-gato, que o deixaram lacerado e com as vestes esfarrapadas!...
Dali, com o facão em punho, as perneiras apenas penduradas pelas correias superiores, ganhou o campo aberto, aos pulos e gesticulações, acompanhados de gritos angustiantes que faziam eco na imensidão e no silencio daquela noite cheia de mistérios!...
Entre cuidadosos e amedrontados, o seguíamos de longe, sem nada compreender daquilo que se passava!
Depois de permanecer, por vários minutos, naquela atitude de desespero e grande aflição, caminhou, a passos incertos e desequilibrados rumo à estrada, onde já o esperávamos prevenidos contra uma possível agressão de sua parte.
Daí a pouco ali estava, diante de nós, de facão em punho, roto, ofegante e exangue, aquele que seria incapaz de um gesto violento contra seus amigos e que jamais se atiraria a uma atividade extraordinária como aquela, dadas as suas condições físicas e o seu temperamento cômodo e tranqüilo.
Aproximamo-nos dele e vimos, cheios de espanto e de terror, através dos óculos que, por milagre, não lhe caíram do rosto, os olhos parados e brilhantes como o mais fino cristal!
Seria possível, Santo Deus! Teria ele perdido para sempre a razão?! E, antes que lhe disséssemos algo, ergueu-se num salto rápido e ameaçador, enquanto a lâmina do seu facão brilhava no alto, beijada pela luz branca da lua...
Movidos pelas molas destras do instinto de conservação, demos dois ou três passos para trás e, em atitude de defesa, esperamos o golpe que, felizmente, não veio.
Os saltos, porém, se repetiram e os gestos e as cenas se multiplicavam e de seus lábios, ressequidos ou queimados pela sede explodiam palavras gritantes, que se traduziam em veementes acusações contra nós os caçadores e vibrante defesa da caça.
Trementes e espavoridos, éramos, por força das circunstâncias, espectadores obrigatórios e necessários daquela cena representada, inconscientemente, por um amigo no palco imenso da natureza exuberante e bela! Exuberância marcante e aterradora! Beleza triste, tétrica, indecifrável!... Noite que ainda hoje me faz tremer ao relembrá-la e descrevê-la!
E, aquele amigo longe da razão perdido na noite negra da inconsciência e da loucura, não dava sinal de abatimento ou de fraqueza ante aqueles esforços, verdadeiramente, sobrenaturais!...
Aos poucos, porém, empurrado, talvez, pela providencia divina e seguido à distância por seus amigos e companheiros, ia abandonando aquele sítio, rumo à porteira que dava acesso à estrada.
Ali chegando, deteve-se. Transpôs a porteira e foi cair na estrada, reintegrado em si, cheio de espanto e de cansaço, porém, vazio, como vazia estivera sua alma e sua razão.
Sem nada compreender de tudo aquilo... Perdido em seu mundo interior, entre gemidos de dor e de cansaço, perguntou-nos, com palavras entrecortadas, o que se havia passado com ele! E, antes que pudéssemos dizer-lhe alguma cousa, concluiu: “E este facão desembainhado?! Estas perneiras soltas?! Esta roupa rasgada e tinta de sangue?! Por quê tudo isso?! Por quê este cansaço?! Esta dor?! Esta imensa vontade de dormir?!”.
Você se esforçou muito. Dizia um. Acha pouco correr de facão em punho, querendo pegar um tatu a unhas? Completava outro.
Mas, o companheiro, quieto e pensativo, não parecia ouvir nossas palavras!
Interpretando a razão daquele silêncio e antes que pudessem sobrevir acontecimentos novos, conseguimos persuadi-lo de que deveríamos partir de regresso à cidade.
E, assim, dobrado pelo cansaço, aniquilado ante os extraordinários esforços desenvolvidos, o conduzimos, apoiado em nossos ombros, até sua residência, numa verdadeira peregrinação de dez quilômetros de estrada, vencidos em mais de cinco horas de duríssima jornada, que marcou a etapa final daquela que foi minha última caçada.
Novembro de 1962.