SOB AS CINZAS DA QUARTA, O ANO COMEÇA...

A vida real no Brasil (todos sabem disto) só começa depois que o carnaval acaba. Enquanto isso o povo brasileiro vive embalado pelo encanto natalino, pela expectativa da virada do ano, pelo frescor da cerveja nas praias lotadas de corpos seminus e sensuais. Enfim, o brasileiro se dá férias prolongadas e o direito de recomeçar realmente na ativa só depois que, o último acorde da bateria anunciar: “Ai, ai, ai ai... está chegando a hora..."

A quarta-feira de cinzas desponta. O sol forte e efusivo sacode os últimos vestígios de confete e purpurina que, sobrevivem ao carnaval. A sensação da vida ressurgindo invade as ruas, e se faz na pressa em retomar as atividades que estiveram adormecidas desde o natal.

Costumes são costumes e de nada adianta ficar contestando hábitos que estão arraigados na cultura de um povo, por mais absurdos que possam parecer. E aqui no nosso país é assim. Depois de alguns meses de pura curtição, o povo vai para as ruas na quarta-feira pós-carnaval como quem leva a marca de cinza na testa.Da tradição do Oriente Médio guardamos a simbologia do arrependimento perante Deus. O dever da conversão, da mudança de vida. E haja cinza!

Entramos na quaresma, pelo calendário ocidental. Quarenta dias (se não contarmos os domingos) de preparação para a páscoa. Ainda hoje, um incontável número de pessoas promete o jejum e abstinência, inspirados nos quarenta dias em que Jesus passou jejuando e rezando, antes de voltar a Jerusalém, quando foi preso e executado.

Nunca entendi o jejum em que não se come carne na quarta e na sexta-feira santas, porém camarão, bacalhau, salmão, linguado e outros peixes nobres compõem o cardápio santificado. Algo em minha mente sempre me fez crer que, era mais um jeitinho brasileiro de “passar a perna” na tradição católica. Larguei mão do medo que tentaram me incutir e ignoro o pecado que cometo em comer carne se assim desejar e que deixa o cardápio pela metade do preço.

São louváveis, sem dúvida, atitudes que têm como objetivo aproximar-se de Jesus e de sua missão neste planeta. O inaceitável é a hipocrisia que mascara estas atitudes. Se o cara que deixa de beber na quaresma é o mesmo que sobrepuja as outras pessoas. Se os beatos que suprimem a dança, a música, a festa, nestes quarenta dias, são os mesmos que invejam, difamam, humilham. Que sentido resta à penitência?

Pratico o respeito por cada pessoa em seus hábitos, costumes e crenças. Por isso afirmo que, certas discussões e rebeldias tornam-se vãs. Vivemos numa sociedade heterogênea em todos os sentidos. O ideal seria que, cada um descobrisse o seu caminho e ditasse regras apenas a si mesmo, naquilo que considerasse necessário. Natal para quem sonha. Carnaval para quem gosta. Quaresma para quem crê. Sem hipocrisia.

Do meu camarote particular vejo a Beija-Flor passar esplendorosa. Faces escuras ocultas sob a magia que se acaba em poucas horas. A quarta-feira chega varrendo os sonhos. O ano começa. Tudo volta ao que sempre foi. Nos barracões da vida alinhavam-se novas fantasias. Ela é assim. E é bonita, é bonita!

Léia Batista
Enviado por Léia Batista em 24/02/2009
Código do texto: T1455745