Entre arranhões e cicatrizes
Odiava arranhões, mal evitado por um monte de colecionadores aficcionados como eu. Nunca me acostumara com a ideia de ter um carrinho arranhado em minha prateleira. Soava medíocre. Algo que feria meu perfeccionismo, minha ambição por coisas completas e perfeitas.
Mas tenho uns cinco ou seis miniaturas que teimo em não jogar fora. Comprei-os quando ainda cursava o ensino médio, tempo em que não tinha dinheiro o suficiente para compor com certa frequência uma coleção "decente". Mas os tinha. Com prazer, insistia em levá-los à escola, às saídas de minha adolescência. Onde quer que eu estivesse, eles estavam comigo.
Mas, de algum tempo para cá, minhas dezenas de anos clamavam pela realização deste sonho antigo: ter uma coleção de carrinhos. E aqueles arranhados estavam lá no canto do armário, ou escondidos em caixas de papelão. Queria me desfazer deles; mas meu íntimo, minhas sinceridades, não.
Comecei a comprar, e comprar. E guardar. E olhar. Mas tinha o desejo de ainda brincar. De ainda levar para os lugares onde vou. É extremamente revelador para mim estar num fim de tarde com aquele sol mais tímido, dentro de um ônibus com um carrinho na mão. Soa eternidade.
Mas os carrinhos no bolso arranham também. E aí fica aquela sensação de coleção... feia. Bom é preservar - em termos. Bom é ter por muitos e muitos anos aqueles carrinhos guardados para fazerem qualquer criança morrer de inveja. Meus amigos também acham isso. E por esse motivo ainda guardam suas miniaturas em suas próprias embalagens.
Mas se vier o pensamento de que a coleção deve ter a minha cara, acho que as coisas mudam de figura.
Sou um cara aventureiro, em busca de epifanias cada vez mais profundas. E nesta caminhada, como dizia Guimarães Rosa, a travessia sempre é mais importante que a partida ou a chegada. Travessia de decepções, da força do acaso. De feridas que cicatrizam e que permanecem em nós.
E quando vejo aqueles carrinhos "perfeitos" em minhas prateleiras, fico pensando em qual história haveriam de contar a alguém. Nenhuma. Aqueles carrinhos nunca saíram do armário e a única coisa que eles contam é o ritual semanal de limpeza, um ato quase litúrgico. nada mais.
Bons mesmo são aqueles carrinhos arranhados. Cada arranhão tem uma história boa ou triste para relatar. Seja aquele dia em que caiu no chão para simular um beijo numa garota desejada ou até mesmo aquele que sofreu uma queda por uma decepção. Ainda tem aqueles que caíram por uma situação divertida, como rir de uma piada. Eles sempre têm uma história para contar.
Vou reintegrar aqueles arranhados para minha coleção e andar um pouco mais com os "perfeitinhos", para que minha coleção seja uma grande biografia, talvez de uma parcela de mundos que só eu conheço...