Gatos Pardos
Era fascinada pela rua. Pessoas tão diferentes, coisas tão diferentes, diferentes movimentos. Clap clap dos sapatos das mulheres, correria de crianças mal-vestidas, homens mal-humorados sorrindo no celular. Cada ser que passava em sua frente era um novo mundo, quase uma América de tão complexo. Mas era fulgaz; não se teorizavam, não se desmembravam para mostrar sua essência, não contavam sua história, não diziam “oi”. Apenas corriam de um lado pro outro, cada qual na sua bolha imaginária. Mas ela era menina boa, inteligente, cheia de imaginação.
Sentava na Praça das Corujas (porque Praça das Corujas, se todas as faixas penduradas falam Praça Castro Alves?) e criava uma história para cada passante. Havia um velhinho, muito bonitinho e tradicional, do tipo apoiado numa bengala, camisa branca fechada até em cima, sandália de couro aberta e costas em arco. Ele caminhava sempre na praça. Ela imaginava coisas exorbitantes sobre o velhinho: seria um militante vermelho, igual dos jornais antigos do pai dela, que conhecia homens fugidos da polícia e teria apanhado nas delegacias? Seria muito triste, por que agora ele caminha e se senta sozinho numa das janelas de vidro do Palácio das Artes. E se fosse tudo isso, deveria ter uma dezena de pessoas querendo saber como foi sua aventura. Mas não há ninguém.
Havia também um senhor que parecia com o pai dela quando não estava trabalhando: usava óculos redondos, tinha o cabelo meio cinza, meio preto, numa cor que ela não sabia definir; usava camisas de manga, calça cortada no alfaiate e sapatos sempre marrons. Marrom é uma cor estranha. Por que será que ele sempre usava sapatos marrons? Como ele sentava sempre no mesmo banco, com um braço estendido no encosto, pernas cruzadas, ela imaginou que talvez esperasse alguém. Uma dama com quem ele teria se correspondido por vários anos, até resolverem se encontrar. Mas se havia uma dama, porque ele estava sozinho? Talvez ela tenha morrido antes de chegar no dia marcado e ele não soubesse. Por isso voltava sempre à mesma hora, na esperança que ela chegasse, como combinado. Era uma história triste para inventar para alguém, mas era a única coisa que ela imaginava para ele.
Gostava dos grupos de homens que jogavam dados. Eram barulhentos, e apostavam dinheiro (um ou dois reais). Ela nunca entendeu o jogo de dados, apesar de observar bem. Eram vários tipos de homens: negros, brancos, bem-vestidos, esfarrapados... Era engraçado vê-los ali, tão diferentes e tão unidos! Não era igual na empresa do pai, quando ia lá almoçar. Havia um restaurante embaixo, e numa mesa sentava só quem tinha terno e na outra mesa sentava os que usavam macacão. Era triste, as pessoas olhavam de cabeça baixa enquanto outras falavam no celular e tentavam comer ao mesmo tempo. Ela preferia a rua, a praça. Todo mundo ficava junto e fazia barulho.
Tanta gente passava pela rua! Tanta coisa acontecia! E ela continuava caminhando, observando como eram as pessoas, as coisas, o tempo, imaginando vidas. E sem saber, fazia o que muitos perderam a capacidade de fazer: olhar para o outro e aceitá-lo. Porque na medida em que vamos crescendo, nos ensinam a negar as pessoas. Ela se sentia triste algumas vezes porque só ela conseguia ver certas coisas que os outros não conseguiam. Enquanto ela via o sorriso grande e verdadeiro, os outros viam deboche e cinismo. Onde ela via beleza e contraste, os outros viam mal-gosto. Onde ela via vida nova, os outros viam morte. Mas não importava. Era só caminhar um pouco e começar a imaginar, que até a rabugice alheia se tornava interessante.