O Sertanejo bom de briga I

Numa vila com poucas casas e muita pobreza, conheci seu Genival. Sertanejo autêntico, magro, queimado do sol. Nos dias de seca era borracheiro. Borracheiro de carro de mão, de carroça, de moto, de alguns poucos carros...Nos dias que a chuva vinha a caminho, era agricultor de mão cheia.

Naquele lugar esquecido pelas autoridades vivia seu Genival, com mulher e cinco filhos. Sua casa, feita de tijolos, uma mistura de barro e palha, secados ao sol.

Considerada um palacete para os padrões do lugar porque tinha: terraço, sala, cozinha, dois quartos e um banheiro do lado de fora, cuja porta era uma mistura de estopa emendada a um pedaço de lona. As paredes, telhas e todo madeiramento, eram pretos da fuligem que saia do fogão à lenha.Poucos móveis.O cheiro da fumaça e borracha estavam entranhados em cada canto.No terraço e salas ficavam todos os apetrechos da borracharia e do trabalho agrícola. No primeiro quarto, uma cama de casal apoiada em cima de vários tijolos. O colchão uma mistura de espuma, colchas e papelão. Guardavam a roupa numas caixas. Por mosquiteiro tinham algo que ninguém conseguia identificar a cor de origem, e, nele havia tantos buracos e remendos que a primeira vista a melhor opção era não fazer uso daquele artefato indesejável para os insetos. No segundo quarto, ficavam um beliche e umas redes enroladas. Na cozinha, apenas uma mesa de madeira talhada à base do machado. Era a única peça que demonstrava durabilidade naquele lugar. O armário uma mistura de caixotes e tocos de madeira. Atrás da casa, um quintal cheio de criações. Eram galinhas e patos. Por sinal, agora me vêm à mente algo que na época me passou despercebido: todas as galinhas eram pretas e tinham um cocuruto de penas. Quando as galinhas estavam chocas, a dona da casa colocava os ninhos dentro de casa. Em cada recanto podíamos encontrar uma avezinha ¨deitada¨.

Plantavam feijão. Quando chegava a época da colheita o carro de boi era requisitado pelos agricultores mais pobres. As ruas e calçadas eram varridas para que recebessem o fruto do trabalho daqueles homens e mulheres, jovens e até crianças. Colocavam ¨carrradas¨ e mais ¨carradas¨ de feijão para secar e quando estava no ponto de ¨bater¨ era uma alegria só. Depois separavam os grãos da vagem, pra novamente colocar os grãos para levar mais sol. Quanto mais sol melhor, diziam todos. Que tristeza quando em época, antes do feijão estar seco, começar a chuva! Era aquele corre-corre. Cada um tentava ¨salvar¨ o que podia. E quem já tinha guardado a sua colheita, corria para ajudar o outro. Era uma mão lavando a outra.

Quando tudo corria bem, o feijão secava normalmente, a vagem era guardada para os bovinos e caprinos. Cada caroço de feijão era apanhado, um por um. Quando alguém fazia uma brincadeira porque toda família do agricultor estava agachada apanhando com a mão, cada grão, alguém dava essa resposta: ¨de grão em grão a galinha enche o papo¨.Todos davam uma ¨gaitada¨ e prosseguiam na labuta até ficar escuro.

Nos dias seguintes, depois do feijão receber bastante sol, chegava à hora de confirmar a quantia de sacos que o olho já chutara de uma tacada.

Os mais apressados ou mais endividados vendiam a safra por qualquer preço. Outros mais precavidos aguardavam a hora certa para negociar. Todos guardavam alguns sacos para comer durante o ano todo.

A vila se transformava nesse período. Durante a bocada da noite, a maioria sentava em tamboretes ou nas calçadas e ficava ¨pilheriando¨ até chegar a hora de estender o ¨corpo velho e cansado¨ para no dia seguinte começar outra vez.

Cheguei a presenciar meninos pelados, chupeta na boca, ajudando na varrida das ruas e calçadas.A vassoura usada era a chamada ¨vassoura de mato¨. Que por sinal não tem coisa melhor pra varrer quintal e rua. Essa vassoura é leve, arrasta tudo que é sujeira e não causa dor nas costas do varredor.

Seu Genival era um dos que sabiamente trocava alguns sacos por milho, porém os outros sacos deixava de reserva. Por experiência própria guardava para os dias difíceis. E esses não tardavam. Todo ano ara a mesma coisa.

Há anos atrás esse sertanejo tinha sofrido uma queda e quando procurou o médico esse lhe disse que não tinha nenhum osso quebrado.

_ E essa dô, doutou qui to sintindu?

Respondeu o médico, já demonstrando que o tempo da consulta se esgotara:

_Essa dor é proveniente dos machucados da carne. Vai passar logo.

Escreveu alguma coisa na receita, mandou que ele passasse na farmácia do hospital, caso não encontrasse o medicamento, não deixasse de comprar, pois aqueles remédios tirariam toda dor.

Mas seu Genival estava com várias costelas quebradas. Procurou um técnico em enfermagem, mas esse não lhe foi de grande ¨valia¨.

_Genival, passe banha de galinha!

Em época de enxada fazia sua parte como todo pai de família tem que fazer, mas penava. Depois da colheita, à base de muito analgésico, ficava de cama. Febre, frio, dores no local, dificuldade para respirar. O fim do sofrimento dava o sinal: um caroço ia surgindo, ficava do tamanho de uma laranja. Não conseguia mais sair da cama. Os médicos passavam antibióticos, mandavam aplicar compressa de água quente.

Certo dia fui visitá-lo e fiquei pasma diante de tanto sofrimento. Conversamos um pouco, porém logo seu Genival ficou caladinho. Enquanto isso, sua esposa ia contando o quanto sofria vendo o esposo naquele estado.

Eu olhava para aquele abscesso tão vermelho e pontudo. Sentia um mal-estar terrível e não via a hora de sair daquele quarto onde só se respirava dor. Percebi que algo começava a escorrer daquele caroço. Arregalei os olhos quando ouvi claramente um som de algo que se abria. A esposa do seu Genival, com seu jeito acanhado, pediu que saíssemos, pois o mau cheiro era muito grande.

Nunca vi tanto alívio no semblante de uma pessoa. Ele sofria, porém percebíamos que naquele ano o martírio daquele homem estava prestes a acabar.

Saímos dali, surpresos e chocados. Na semana seguinte, seu Genival estava de pé, com um sorriso de orelha a orelha, pronto para continuar sua vida de sertanejo bom de briga. Bom de briga no trabalho, na coragem, no amor que tinha para com sua família e com o próximo.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 19/02/2009
Código do texto: T1448189
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