CASA VELHA

A imortalidade não pertence ao fato em si. É filha da memória. Minha nossa, tanta filosofia barata para falar de um bar! Melhor dizendo, de um bar e de histórias de bar. Perdi a conta das belas, divertidas e inusitadas situações vividas nos bares que acompanham nossa rota de adolescentes e as reuniões de amigos, de caçadores de aventuras amorosas ou de lazer desacompanhado de segundas intenções. O bar não é somente o refúgio etílico dos destituídos de afeto social, tampouco o ponto ideal para as tomadas de decisões que envolvam rota de mudanças ou permanências desejadamente definitivas. Antes e acima de tudo é o lugar do encontro casual ou marcado. O espaço da reflexão breve, da observação de modos e maneiras e em última análise, lugar para se comer e beber, bem ou mal. Aos mineiros a quem é imposta a marca de ter esse recanto entre suas preferências primeiras por não serem diariamente lavados nas bordas e entranhas pelo mar, e se a alguém isso incomoda, digo que o coração que cabe no mar bate mais perto no bar, e que os bares vão às praias também. Pois é, mas o assunto aqui é dessas noites que a gente não tem vontade de ver terminar. Ainda mais que aquela noite eu vi, enquanto esperava condução para voltar para casa. O cenário de um bar qualquer já bastava, mas aquele tinha uma particularidade estética: era um casarão do século XIX, que abandonado ou sei lá o que, foi transformado em um lindo bar e em conseqüência, também o mais freqüentado em Itabira. Chamava-se Casa Velha Bar. Noites servidas de canções ao som dos vários violões que por lá circulavam com seus magníficos artistas anônimos, de deliciosos caldos preparados para as noites mais frias (o que era comum em Itabira, o frio) e enfeitadas pela beleza arquitetônica. Não se podendo esquecer a localização, bem no alto do morro mais central da cidade, ao lado da imponente Igreja da Saúde. Estávamos quase todos em inícios de namoros, mais ou menos apaixonados – dependendo do tempo, dos pares e das intenções. Cantorias, fugas para os arredores mais escuros em volta da casa-bar pelos mais afoitos com a libido e o doce e ardente clima de noite boêmios completavam a companhia.

O Genésio, o nosso violeiro e compositor de verve da mais alta criatividade e também dono de irrefutáveis argumentos apaixonados e apaixonantes, tanto nas letras de suas composições, como ao vivo e aos beijos (ou melhor, a cores), namorava a Rogéria, amiga elétrica e falante da nossa turma. E ao mesmo tempo, a Betânia, outra amiga, menos elétrica e menos falante, enfermeira, que poucas noites tinha disponíveis por causa de seus plantões no hospital. Ambas amigas comuns da turma, mas estranhas entre si, até então. Assim a sua administração do imbróglio ficava mais fácil; tanto que havia ficado noivo de uma e de outra. Dá-se dessas trágicas e cômicas coincidências, não muito difíceis em uma cidade pequena, de encontrarem-se as duas, já desconfiadas da meada ou avisadas por alguma amiga solidária e resolvem levá-lo a julgamento público ali mesmo e naquela hora (foi assim que acabaram se tornando amigas; pelos acordes dissonantes que as vitimavam). Ele lá, desavisado e alheio a tudo, agradando a todos com a voz e o som delicioso do violão. Intimado aos devidos esclarecimentos para a decisão da escolha obrigatória entre essa ou aquela - não sem antes ser chamado de safado, pilantra, traidor, entre outros adjetivos pouco amáveis-, postou-se de pé, diante de toda a platéia que se formou em volta. Num simples e rápido lance, quando todos já contavam com sua tentativa de fuga, palidez ou rompimento definitivo, desferiu poeticamente seu sincero depoimento. Voz grave, firme e afinada, deixou-as com cara de tacho e a todos mais ainda boquiabertos.

– Não posso fazer nada. Eu amo as duas.

josé cláudio Cacá
Enviado por josé cláudio Cacá em 19/02/2009
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